sexta-feira, 14 de junho de 2013

Direito ao Protesto: promessa e compromisso com o primeiro direito


Os vários dias seguidos de protestos em São Paulo e em diversas cidades do País pela redução das tarifas de ônibus têm colocado em voga quais são as possibilidades e limites das manifestações e dos protestos que bloqueiam ruas e praças.

O momento é oportuno e, por isso, apresentamos e colocamos em debate o esboço de um artigo científico mais amplo e profundo que vimos escrevendo. Abaixo vão os principais argumentos jurídicos e democráticos sobre como e porque devemos defender o direito ao protesto. O artigo completo deve sair publicado em breve, em coletânea organizada pelo Prof. Clèmerson Merlin Clève em comemoração aos 25 anos da Constituição de 1988. Para os que quiserem se aprofundar sobre o tema:

-       GARGARELLA, Roberto. El Derecho a la Protesta: el primer derecho. Buenos Aires, Ad-Hoc, 2005.

 - GODOY, Miguel Gualano de. Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella. São Paulo: Saraiva/FGV, 2012.
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(Direito ao) protesto: promessa e compromisso com o primeiro direito
Vera Karam de Chueiri 
(Professora Associada de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de  Pesquisa Constitucionalismo e Democracia. Vice-diretora da Faculdade de Direito)
Miguel Gualano de Godoy 
(Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela UFPR. Pesquisador do Núcleo Constitucionalismo e Democracia)




Partindo do pressuposto de que a democracia é um constante processo de reinvenção de direitos e o conflito não pode jamais ser erradicado da sociedade (Claude Lefort), como encarar esses conflitos pela redução da passagem de ônibus; contra a truculência da polícia; contra a corrupção; pela efetivação de direitos sistematicamente negados, etc.?
É, sobretudo, com atos e movimentos de protesto que esses conflitos constitutivos do sistema constitucional-democrático são exibidos e exacerbados. Dessa forma, protestos, manifestações, ganham importância, pois em geral são os sintomas mais claros de violação de direitos fundamentais e (ou) a única forma encontrada para se fazer ouvir num processo democrático que é surdo aos gritos dos sujeitos que têm seus direitos sistematicamente negados, violados e, em geral, também são privados de condições mínimas e dignas de existência.
Os direitos nas sociedades contemporâneas, especialmente, no século vinte e um se associam a demandas que se singularizam nas pessoas, individual ou coletivamente, e que são, na mesma medida, urgentes. Assim, é o próprio direito ao protesto. O seu exercício envolve, ao mesmo tempo e com igual importância, a liberdade de expressão e convicção, a liberdade de reunião e manifestação, a igualdade de respeito e consideração, a igualdade de participação, etc . Não importa o gênero, a cor, a orientação sexual, ou qualquer outra diferença, todos têm o direito de protestar e suas demandas devem ser levadas a sério.
Em junho de 2013, vimos os atos contra o aumento das passagens de ônibus se expressarem também na forma de protestos e, novamente, como crítica que se amplia, inclusive, para além do aumento da tarifa de ônibus – são protestos por direitos: por um transporte público de qualidade, pela possibilidade de livre reunião e manifestação, contra um sistema institucional e representativo que cada vez mais se distancia das pessoas e de suas necessidades.
A Constituição Republicana de 1988, em seu artigo 5o, caput e nos desdobramentos deste artigo, ao longo da sua narrativa, prescreve que todos devem ser tratados como iguais, independentemente de qualquer distinção. Prescreve, ainda, a vedação de qualquer tratamento desumano ou degradante, como também a redução das desigualdades, a erradicação da pobreza e da marginalização tendo como fundamento o Estado democrático de Direito.
Entretanto, não basta prometer, é preciso se comprometer e o tempo do comprometimento ou do compromisso é o tempo presente, o tempo da ação. Ou seja, a Constituição como narrativa do constitucionalismo e da democracia promete e compromete, vincula passado, presente e futuro e o descumprimento dessas promessas e compromissos – estes traduzidos nos direitos fundamentais – pode originar (sempre e novamente) movimentos de protesto e resistência.
Os protestos são verdadeiras janelas para a manifestação da democracia, para mostrar que é somente no dissenso que a democracia é verdadeiramente construída e operada.
Apesar da promessa constitucional de tratar a todos como iguais, grupos amplos da nossa  sociedade sofrem graves e sistemáticos maus-tratos – o transporte público de péssima qualidade, lento, sempre atrasado, lotado e com uma tarifa que pesa no bolso do brasileiro é um exemplo disso. Essa situação, para ficarmos apenas com ela, os leva a viver em condições muito piores do que as do restante (uma minoria) da população e quase sempre por razões completamente alheias às suas responsabilidades. Se o Direito pretende honrar a promessa de tratar a todos como iguais, deve assegurar então àqueles que hoje são excluídos um tratamento mais atencioso. Enquanto isso não acontece, o Direito deve dar especial proteção aos que reclamam por ser tratados como iguais e deve, portanto, proteger e não calar os protestos. Daí a afirmação de Roberto Gargarella de que o direito ao protesto aparece, assim, como o “primeiro direito” – o direito de exigir a recuperação dos demais direitos.
Portanto, protestar não é simplesmente um ato juvenil, de rebeldia -com o que o senso comum geralmente o identifica- mas, conforme dissemos anteriormente, o exercício de um direito fundamental, o primeiro direito.
O direito ao protesto renova o compromisso democrático constitucional na articulação entre o livre pensar, a participação aberta a quem queira se expressar e das mais diversas formas, agregando, assim, os iguais nas suas diferenças, construindo caminhos, através de pontes ou consensos provisórios, na medida em que é no dissenso que a democracia e o constitucionalismo constituem uma verdadeira comunidade que a todo tempo questiona a sua própria identidade e por isso sempre em transformação. Poderíamos dizer que o direito ao protesto reforça o sentido de autogoverno, na medida da participação dos cidadãos na tomada das decisões que lhes afetam; ser, de fato, sujeito das suas próprias decisões políticas e econômicas. Como sugere Gargarella, “os cidadãos devem ter a possibilidade efetiva de refletir coletivamente sobre os assuntos mais econômicos mais cruciais de sua comunidade. Um bom sistema institucional deve favorecer tal discussão ao invés de permitir que ela seja remotamente possível”.
Em casos como os de bloqueios de ruas e ocupações de praças deve-se levar mais a sério o peso de um direito como o da liberdade de expressão. É certo que o exercício de um direito não pode importar na supressão de outro, mas é importante levar em conta que a liberdade de expressão é um dos primeiros e mais importantes fundamentos da estrutura democrática. Vale ressaltar que são as ruas, os parques e as praças os lugares especialmente privilegiados para a expressão pública da cidadania. Apesar das manifestações públicas causarem quase sempre algum tipo de moléstia (sujeira nas ruas pela distribuição de panfletos, lentidão ao trânsito de veículos etc.) elas devem ser toleradas em honra à liberdade de expressão (e tais moléstias devem ainda ser contornadas pelas autoridades públicas que devem manter as ruas limpas e organizar o trânsito). Em que pese os incômodos gerados pelos protestos, eles são uma forma privilegiada de expressão e devem sempre ter seu conteúdo, suas ideias resguardados. É claro que os delitos que algumas vezes se cometem nesses atos de protesto (como a eventual quebra de patrimônio público, por exemplo) devem ser responsabilizados. Mas esses excessos não podem impedir a continuação das expressões públicas de cidadania, especialmente porque muitas vezes, quase sempre, as motivações dos protestos decorrem do descumprimento do Estado com suas próprias obrigações constitucionais. Vale dizer, antes de se criticar e condenar aqueles que protestam, é preciso, pois, direcionar as críticas às autoridades que deixaram de cumprir com as suas obrigações.
É preciso ressaltar, ainda, as dificuldades (formais e materiais) que a maioria dos grupos que realizam protestos tem para se expressar. Muitas parcelas da sociedade encontram graves dificuldades para tornar audíveis suas vozes e se fazerem escutar pelo poder político. Os atos de protesto, a exemplo dos bloqueios de ruas, mostram uma desesperada necessidade de tornar visíveis situações extremas que, aparentemente, e de outro modo, não alcançariam visibilidade pública. Daí a afirmação de Gargarella de que “é preocupante que um sistema democrático conviva com situações de miséria, mas é catastrófico que tais situações não possam traduzir-se em demandas diretas sobre o poder público”.
Em situações de protesto como os bloqueio de ruas há sempre a arguição de conflito entre direitos – o direito de os protestantes se manifestarem bloqueando as ruas e o direito dos cidadãos de circularem livremente. Diante disso, há quem defenda que o alcance dos direitos constitucionais se estabelece à luz de certos interesses coletivos como “o bem comum”; o “bem estar geral”; o “interesse nacional” etc. Os direitos, nesse caso, não possuem uma força moral intrínseca e parecem dependentes de valores externos a eles. Aqueles que aderem a essa posição, especialmente Delegados e Juízes, em geral começam seus raciocínios e decisões com ideias tais como “não existem direitos ilimitados”, ou “o direito de cada um termina onde começa o do outro”. Afirmações como essas têm muito pouco conteúdo informativo e ainda menos conteúdo prescritivo. Essas frases postas simplesmente dessa maneira efetivamente não dizem nada, mas são muitas vezes utilizadas como argumento ou fundamentação final da decisão. Tais expressões deveriam ser apenas o início de um raciocínio a ser desenvolvido detalhadamente. No entanto, têm sido utilizadas como a única e fundamental premissa para a resolução do caso. Sem que os juízes digam qual é o limite do direito rechaçado, o que fazer após a descoberta desse limite e por quais razões referido direito foi afastado eles nada terão dito, mas apenas decidido de forma superficial, rasa e infundada.
Essa postura nada diz sobre como enfrentar o conflito de direitos no caso concreto. Nesse sentido, decidir com base na ideia de que “nenhum direito é ilimitado” ou que “se deve honrar o bem comum” é interromper e pôr fim a uma manifestação ou preservar o conteúdo da denúncia feita sob forma de protesto? A pergunta apenas evidencia como as autoridades podem explorar a ambiguidade dos termos para impor decisões arbitrárias. Tampouco a disputa pela definição do conteúdo dessas noções oferece alguma resposta. Ainda que houvesse um consenso sobre o sentido e o conteúdo dessas noções, tal postura negaria a possibilidade razoável de estabelecer mudanças nas convicções morais e nos costumes tradicionais da comunidade.
Em casos de protestos que se realizam por meio do bloqueio de ruas há um conflito que envolve diversos direitos como o de liberdade de expressão, o direito de peticionar às autoridades, o de circular livremente, de ter as ruas limpas etc. Nesse tipo de situação, devemos defender a preservação e sobreposição dos direitos ligados e mais próximos ao núcleo democrático da Constituição. Ou seja, se há dezenas de direitos em jogo, como comumente acontece em situações de protesto e bloqueios de estradas, deve-se fazer o máximo esforço para preservar os direitos mais intimamente ligados ao núcleo duro da Constituição, isto é a liberdade e a igualdade e seus desdobramentos. E esse núcleo duro deve ser compreendido, em última análise, como as regras básicas do jogo democrático. Nesse núcleo duro, direitos como os vinculados à liberdade de expressão ocupam então um lugar central.
Ou seja, os direitos ligados ao núcleo democrático da Constituição – e que não precisam necessariamente estar enumerados -  (artigos, 1o, 2o, 3o,4o, 5o, 6o e 7o e seus desdobramentos), também concebidos como trunfos, são pensados não como uma categoria dependente de outra (como o bem comum, por exemplo), mas como normas invioláveis e oponíveis contra qualquer sujeito, grupo e contra o próprio Estado. É a partir desse compromisso que se sustenta o valor do sistema de procedimentos democráticos.
Por tudo isso, aos grupos que protestam hoje pela redução das tarifas de ônibus e que são brutalmente reprimidos por meio do uso de uma força desproporcional e violenta por parte do Estado, reafirmamos nosso compromisso com a democracia, com os direitos fundamentais e, portanto, com o direito de protestar: não podemos ser indiferentes.

2 comentários:

  1. Gostei da proposta de artigo. Se me permitem dar uma sugestão, creio que ela passa de forma superficial em um tema que merece ser aprofundado em uma versão mais completa, a questão sobre a violência. Acho que essa é uma das principais discussões levantadas pelas atuais manifestações, afinal, elas só começaram ser ouvidas quando "radicalizaram" suas posições. Foi quando a grande mídia passou a noticiá-las, noticiando-as por meio da criminalização.
    O estopim dos atuais protestos foram as manifestações em Goiânia, que no quinto ato seguindo, poucos dias antes do encontro da UNE (ocorreu em Goiânia tb, reunindo estudantes de todo país e de múltiplas organizações política partidárias ou não), queimou três ônibus, um carro, uma agência bancária, além de outras depredações. Ação que foi noticiada por dois dias seguidos no Jornal Nacional e em todos grandes veículos de comunicação brasileiros. Logo após foram articuladas manifestações conjuntas entre Goiânia, SP, RJ e Natal.
    Faço esse breve relato para defender que foi com a radicalização inicial desses protestos e a subsequente ampla cobertura da mídia criminalizando-os, que os permitiram ser escutados. Essa foi a pólvora. Tão importante quanto ter a possibilidade de dizer é tb permitir que as instituições democráticas captem o que foi dito. O que nos mostra as presentes manifestações é que foram necessários, ao menos em um primeiro momento, alguns atos que a grande mídia chamou de "depredação", de "atitudes criminosas", de "atitudes violentas". Rejeitar essas ações seria, em alguma medida, negar o próprio direito de ser escutado, o direito de levar as reivindicações a sério. Manifestações precisam causar disfuncionalidades para serem escutadas.
    Manifestantes e polícia devem ser responsabilizados por seus atos? Creio que sim. No entanto outra discussão é se mesmo quando destroem patrimônios públicos e/ou particulares estão agindo de forma legítimas ou não. Se são atitudes necessárias ou não para a construção de direitos e, portanto, devem ser defendidas ou não no plano teórico-político. Creio que restringir a discussão, limitar o direito a manifestação e à expressão a uma reunião "ordeira" em vias públicas é permanecer em uma zona de conforto e em um terreno de discussão muito favoráveis, por mais que a polícia, governantes e juízes ainda não tenham reconhecido, em muitos casos, nem ao menos esse direito.
    atenciosamente,
    Eduardo Rocha

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    1. Você toca em questões importantes, sobretudo no papel questionável da mídia que age com interesse e parcialidade e tenta criminalizar os atos de protesto.

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