Os vários dias seguidos de protestos em São Paulo e em diversas cidades
do País pela redução das tarifas de ônibus têm colocado em voga quais são as
possibilidades e limites das manifestações e dos protestos que bloqueiam ruas e
praças.
O momento é oportuno e, por isso, apresentamos e colocamos em debate o
esboço de um artigo científico mais amplo e profundo que vimos escrevendo.
Abaixo vão os principais argumentos jurídicos e democráticos sobre como e
porque devemos defender o direito ao protesto. O artigo completo deve sair
publicado em breve, em coletânea organizada pelo Prof. Clèmerson Merlin Clève
em comemoração aos 25 anos da Constituição de 1988. Para os que quiserem se
aprofundar sobre o tema:
- GARGARELLA, Roberto. El Derecho a la Protesta: el primer
derecho. Buenos Aires, Ad-Hoc, 2005.
- GODOY, Miguel Gualano de. Constitucionalismo e Democracia: uma
leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella. São Paulo:
Saraiva/FGV, 2012.
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(Direito
ao) protesto: promessa e compromisso com o primeiro direito
Vera Karam de
Chueiri
(Professora Associada de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia. Vice-diretora da Faculdade de Direito)
Miguel Gualano de Godoy
(Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela UFPR. Pesquisador do Núcleo Constitucionalismo e Democracia)
Partindo do pressuposto de que a democracia é um
constante processo de reinvenção de direitos e o conflito não pode jamais ser
erradicado da sociedade (Claude Lefort), como encarar esses conflitos pela
redução da passagem de ônibus; contra a truculência da polícia; contra a
corrupção; pela efetivação de direitos sistematicamente negados, etc.?
É, sobretudo, com atos e
movimentos de protesto que esses conflitos constitutivos do sistema
constitucional-democrático são exibidos e exacerbados. Dessa forma, protestos, manifestações, ganham
importância, pois em geral são os sintomas mais claros de violação de direitos
fundamentais e (ou) a única forma encontrada para se fazer ouvir num processo
democrático que é surdo aos gritos dos sujeitos que têm seus direitos
sistematicamente negados, violados e, em geral, também são privados de
condições mínimas e dignas de existência.
Os direitos nas
sociedades contemporâneas, especialmente, no século vinte e um se associam a
demandas que se singularizam nas pessoas, individual ou coletivamente, e que
são, na mesma medida, urgentes. Assim, é o próprio direito ao protesto. O seu
exercício envolve, ao mesmo tempo e com igual importância, a liberdade de
expressão e convicção, a liberdade de reunião e manifestação, a igualdade de
respeito e consideração, a igualdade de participação, etc . Não importa o
gênero, a cor, a orientação sexual, ou qualquer outra diferença, todos têm o
direito de protestar e suas demandas devem ser levadas a sério.
Em junho de 2013, vimos
os atos contra o aumento das passagens de ônibus se expressarem também na forma
de protestos e, novamente, como crítica que se amplia, inclusive, para além do
aumento da tarifa de ônibus – são protestos por direitos: por um transporte
público de qualidade, pela possibilidade de livre reunião e manifestação,
contra um sistema institucional e representativo que cada vez mais se distancia
das pessoas e de suas necessidades.
A Constituição
Republicana de 1988, em seu artigo 5o, caput e nos desdobramentos
deste artigo, ao longo da sua narrativa, prescreve que todos devem ser tratados
como iguais, independentemente de qualquer distinção. Prescreve, ainda, a
vedação de qualquer tratamento desumano ou degradante, como também a redução
das desigualdades, a erradicação da pobreza e da marginalização tendo como
fundamento o Estado democrático de Direito.
Entretanto, não basta
prometer, é preciso se comprometer e o tempo do comprometimento ou do
compromisso é o tempo presente, o tempo da ação. Ou seja, a Constituição como narrativa do constitucionalismo e da democracia
promete e compromete, vincula passado, presente e futuro e o descumprimento
dessas promessas e compromissos – estes traduzidos nos direitos fundamentais –
pode originar (sempre e novamente) movimentos de protesto e resistência.
Os protestos são verdadeiras janelas para a manifestação da democracia,
para mostrar que é somente no dissenso que a democracia é verdadeiramente
construída e operada.
Apesar da promessa constitucional de tratar a todos
como iguais, grupos amplos da nossa
sociedade sofrem graves e sistemáticos maus-tratos – o transporte
público de péssima qualidade, lento, sempre atrasado, lotado e com uma tarifa
que pesa no bolso do brasileiro é um exemplo disso. Essa situação, para ficarmos apenas com ela, os leva a viver em
condições muito piores do que as do restante (uma minoria) da população e quase
sempre por razões completamente alheias às suas responsabilidades. Se o Direito pretende honrar a promessa de
tratar a todos como iguais, deve assegurar então àqueles que hoje são excluídos
um tratamento mais atencioso. Enquanto isso não acontece, o Direito deve
dar especial proteção aos que reclamam por ser tratados como iguais e deve,
portanto, proteger e não calar os protestos. Daí a afirmação de Roberto Gargarella de que o direito ao protesto
aparece, assim, como o “primeiro direito” – o direito de exigir a recuperação
dos demais direitos.
Portanto, protestar não é simplesmente um ato juvenil, de rebeldia -com o que o
senso comum geralmente o identifica- mas, conforme dissemos anteriormente, o
exercício de um direito fundamental, o primeiro direito.
O direito ao protesto
renova o compromisso democrático constitucional na articulação entre o livre
pensar, a participação aberta a quem queira se expressar e das mais diversas
formas, agregando, assim, os iguais nas suas diferenças, construindo caminhos,
através de pontes ou consensos provisórios, na medida em que é no dissenso que
a democracia e o constitucionalismo constituem uma verdadeira comunidade que a
todo tempo questiona a sua própria identidade e por isso sempre em
transformação. Poderíamos dizer que o
direito ao protesto reforça o sentido de autogoverno, na medida da participação
dos cidadãos na tomada das decisões que lhes afetam; ser, de fato, sujeito das
suas próprias decisões políticas e econômicas. Como sugere Gargarella, “os
cidadãos devem ter a possibilidade efetiva de refletir coletivamente sobre os
assuntos mais econômicos mais cruciais de sua comunidade. Um bom sistema
institucional deve favorecer tal discussão ao invés de permitir que ela seja
remotamente possível”.
Em casos como os de
bloqueios de ruas e ocupações de praças deve-se levar mais a sério o peso de um
direito como o da liberdade de expressão. É
certo que o exercício de um direito não pode importar na supressão de outro,
mas é importante levar em conta que a liberdade de expressão é um dos primeiros
e mais importantes fundamentos da estrutura democrática. Vale ressaltar que são as ruas, os parques e as praças os lugares
especialmente privilegiados para a expressão pública da cidadania. Apesar das
manifestações públicas causarem quase sempre algum tipo de moléstia (sujeira
nas ruas pela distribuição de panfletos, lentidão ao trânsito de veículos etc.)
elas devem ser toleradas em honra à liberdade de expressão (e tais moléstias
devem ainda ser contornadas pelas autoridades públicas que devem manter as ruas
limpas e organizar o trânsito). Em que pese os incômodos gerados pelos
protestos, eles são uma forma privilegiada de expressão e devem sempre ter seu
conteúdo, suas ideias resguardados. É
claro que os delitos que algumas vezes se cometem nesses atos de protesto (como
a eventual quebra de patrimônio público, por exemplo) devem ser
responsabilizados. Mas esses excessos não podem impedir a continuação das
expressões públicas de cidadania, especialmente porque muitas vezes, quase
sempre, as motivações dos protestos decorrem do descumprimento do Estado com
suas próprias obrigações constitucionais. Vale dizer, antes de se criticar
e condenar aqueles que protestam, é preciso, pois, direcionar as críticas às
autoridades que deixaram de cumprir com as suas obrigações.
É preciso ressaltar,
ainda, as dificuldades (formais e materiais) que a maioria dos grupos que
realizam protestos tem para se expressar. Muitas parcelas da sociedade
encontram graves dificuldades para tornar audíveis suas vozes e se fazerem
escutar pelo poder político. Os atos de
protesto, a exemplo dos bloqueios de ruas, mostram uma desesperada necessidade
de tornar visíveis situações extremas que, aparentemente, e de outro modo, não
alcançariam visibilidade pública. Daí a afirmação de Gargarella de que “é
preocupante que um sistema democrático conviva com situações de miséria, mas é
catastrófico que tais situações não possam traduzir-se em demandas diretas
sobre o poder público”.
Em situações de protesto como os bloqueio de ruas
há sempre a arguição de conflito entre direitos – o direito de os protestantes
se manifestarem bloqueando as ruas e o direito dos cidadãos de circularem
livremente. Diante disso, há quem defenda
que o alcance dos direitos constitucionais se estabelece à luz de certos
interesses coletivos como “o bem comum”; o “bem estar geral”; o “interesse
nacional” etc. Os direitos, nesse caso, não possuem uma força moral intrínseca
e parecem dependentes de valores externos a eles. Aqueles que aderem a essa
posição, especialmente Delegados e Juízes, em geral começam seus raciocínios e
decisões com ideias tais como “não
existem direitos ilimitados”, ou “o direito de cada um termina onde começa o do
outro”. Afirmações como essas têm muito pouco conteúdo informativo e ainda
menos conteúdo prescritivo. Essas frases postas simplesmente dessa maneira
efetivamente não dizem nada, mas são muitas vezes utilizadas como argumento ou
fundamentação final da decisão. Tais expressões deveriam ser apenas o
início de um raciocínio a ser desenvolvido detalhadamente. No entanto, têm sido
utilizadas como a única e fundamental premissa para a resolução do caso. Sem que os juízes digam qual é o limite do
direito rechaçado, o que fazer após a descoberta desse limite e por quais
razões referido direito foi afastado eles nada terão dito, mas apenas decidido
de forma superficial, rasa e infundada.
Essa postura nada diz
sobre como enfrentar o conflito de direitos no caso concreto. Nesse sentido,
decidir com base na ideia de que “nenhum direito é ilimitado” ou que “se deve
honrar o bem comum” é interromper e pôr fim a uma manifestação ou preservar o
conteúdo da denúncia feita sob forma de protesto? A pergunta apenas evidencia
como as autoridades podem explorar a ambiguidade dos termos para impor decisões
arbitrárias. Tampouco a disputa pela definição do conteúdo dessas noções
oferece alguma resposta. Ainda que houvesse um consenso sobre o sentido e o
conteúdo dessas noções, tal postura negaria a possibilidade razoável de
estabelecer mudanças nas convicções morais e nos costumes tradicionais da
comunidade.
Em casos de protestos que se realizam por meio do
bloqueio de ruas há um conflito que envolve diversos direitos como o de
liberdade de expressão, o direito de peticionar às autoridades, o de circular
livremente, de ter as ruas limpas etc. Nesse tipo de situação, devemos defender a
preservação e sobreposição dos direitos ligados e mais próximos ao núcleo
democrático da Constituição. Ou seja, se há dezenas de direitos em jogo, como
comumente acontece em situações de protesto e bloqueios de estradas, deve-se
fazer o máximo esforço para preservar os direitos mais intimamente ligados ao
núcleo duro da Constituição, isto é a liberdade e a igualdade e seus
desdobramentos. E esse núcleo duro deve ser compreendido, em última análise,
como as regras básicas do jogo democrático. Nesse núcleo duro, direitos como os
vinculados à liberdade de expressão ocupam então um lugar central.
Ou seja, os direitos
ligados ao núcleo democrático da Constituição – e que não precisam
necessariamente estar enumerados -
(artigos, 1o, 2o, 3o,4o, 5o,
6o e 7o e seus desdobramentos), também concebidos como
trunfos, são pensados não como uma categoria dependente de outra (como o bem
comum, por exemplo), mas como normas invioláveis e oponíveis contra qualquer
sujeito, grupo e contra o próprio Estado. É a partir desse compromisso que se
sustenta o valor do sistema de procedimentos democráticos.
Por tudo isso, aos grupos que protestam hoje pela redução das tarifas de
ônibus e que são brutalmente reprimidos por meio do uso de uma força
desproporcional e violenta por parte do Estado, reafirmamos nosso compromisso
com a democracia, com os direitos fundamentais e, portanto, com o direito de
protestar: não podemos ser indiferentes.
Gostei da proposta de artigo. Se me permitem dar uma sugestão, creio que ela passa de forma superficial em um tema que merece ser aprofundado em uma versão mais completa, a questão sobre a violência. Acho que essa é uma das principais discussões levantadas pelas atuais manifestações, afinal, elas só começaram ser ouvidas quando "radicalizaram" suas posições. Foi quando a grande mídia passou a noticiá-las, noticiando-as por meio da criminalização.
ResponderExcluirO estopim dos atuais protestos foram as manifestações em Goiânia, que no quinto ato seguindo, poucos dias antes do encontro da UNE (ocorreu em Goiânia tb, reunindo estudantes de todo país e de múltiplas organizações política partidárias ou não), queimou três ônibus, um carro, uma agência bancária, além de outras depredações. Ação que foi noticiada por dois dias seguidos no Jornal Nacional e em todos grandes veículos de comunicação brasileiros. Logo após foram articuladas manifestações conjuntas entre Goiânia, SP, RJ e Natal.
Faço esse breve relato para defender que foi com a radicalização inicial desses protestos e a subsequente ampla cobertura da mídia criminalizando-os, que os permitiram ser escutados. Essa foi a pólvora. Tão importante quanto ter a possibilidade de dizer é tb permitir que as instituições democráticas captem o que foi dito. O que nos mostra as presentes manifestações é que foram necessários, ao menos em um primeiro momento, alguns atos que a grande mídia chamou de "depredação", de "atitudes criminosas", de "atitudes violentas". Rejeitar essas ações seria, em alguma medida, negar o próprio direito de ser escutado, o direito de levar as reivindicações a sério. Manifestações precisam causar disfuncionalidades para serem escutadas.
Manifestantes e polícia devem ser responsabilizados por seus atos? Creio que sim. No entanto outra discussão é se mesmo quando destroem patrimônios públicos e/ou particulares estão agindo de forma legítimas ou não. Se são atitudes necessárias ou não para a construção de direitos e, portanto, devem ser defendidas ou não no plano teórico-político. Creio que restringir a discussão, limitar o direito a manifestação e à expressão a uma reunião "ordeira" em vias públicas é permanecer em uma zona de conforto e em um terreno de discussão muito favoráveis, por mais que a polícia, governantes e juízes ainda não tenham reconhecido, em muitos casos, nem ao menos esse direito.
atenciosamente,
Eduardo Rocha
Você toca em questões importantes, sobretudo no papel questionável da mídia que age com interesse e parcialidade e tenta criminalizar os atos de protesto.
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