terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Democracia Bloqueada

Saiu na Gazeta do Povo de ontem (17/02/14), no Caderno Universidade, o artigo que escrevi para o Instituto Atuação, intitulado "DEMOCRACIA BLOQUEADA".

http://s1285.photobucket.com/user/atuapr/media/PAacuteGINAATUACcedilAtildeOUNIVERSITAacuteRIA04_2014-corrigida-page-001_zps3f5e272f.jpg.html
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DEMOCRACIA BLOQUEADA
Miguel G. Godoy[1]

O objetivo deste ensaio é mostrar como uma concepção exigente de democracia – a democracia deliberativa – pode nos fazer repensar como  nos tem sido negado um direito tão básico quanto fundamental: a participação ativa e direta dos cidadãos na vida político-democrática de nosso país.
Apesar da Constituição de 1988 estabelecer logo em seu art. 1°, parágrafo único, que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes ou diretamente, não temos tido, além do voto, muitas outras formas de participação e controle diretos sobre as instituições representativas do povo. Não é à toa que Paulo Bonavides, um dos principais juristas do Brasil, ao tratar da democracia participativa asseverou que “somos uma democracia bloqueada, uma democracia mutilada, uma democracia sem povo”. Essa declaração é uma denúncia, representa uma indignação, uma indignação compartilhada, pois a democracia no Brasil é muito mais palavra do que ação. Ela é, quase sempre, mero substantivo, quando muito um adjetivo, mas poucas vezes ela é prática, é ação. É contra esse bloqueio à participação direta do povo, e em favor do que estabelece nossa Constituição, que devemos, pois, resgatar o significado de democracia hoje. Nesse sentido, tem se destacado, tanto do ponto de vista teórico quanto prático, a concepção deliberativa de democracia.
A democracia deliberativa parte da ideia de que um sistema político valioso é aquele que promove a tomada de decisões imparciais, por meio de um debate coletivo com todos os potencialmente afetados pela decisão, tratando-os com igualdade. A ideia de avaliar a opinião de todos aqueles potencialmente afetados parece, assim, responder à intuição básica de que todos são iguais e devem ser tratados com igual respeito e consideração.
A principal virtude da democracia deliberativa é, assim, a de que ela promove e facilita a discussão pública. A discussão assume um papel central para a democracia deliberativa porque por meio dela se eliminam possíveis erros fáticos e lógicos que se apresentam nos argumentos. Ou seja, por meio da deliberação os sujeitos apresentam suas convicções perante os outros, os quais atuarão não como meros receptores daquela informação/opinião, mas como verdadeiros filtros. Essa dinâmica permite, ainda, que, além da identificação de possíveis equívocos, se incremente o argumento que até então estava sendo exposto com a adição de novas informações e opções, que eram ignoradas ou desconhecidas. Por isso a discussão é tão importante, pois é por meio dela que não apenas se retifica ou refina o argumento, mas também se conhecem os pontos de vista e interesses dos demais.
A discussão também apresenta um outro benefício, o seu caráter educativo. O processo deliberativo de exposição de opiniões, escuta dos argumentos etc., abre espaço para a autoeducação daqueles que estão debatendo, para a melhora de seus raciocínios, de sua convivência em comunidade. A deliberação pública também tende a forçar as pessoas a modificarem seus argumentos de tal forma a torná-los mais aceitáveis pelos demais. E é justamente esse procedimento, a discussão e deliberação públicas, que tende a favorecer a formação do consenso e a tomada de uma decisão imparcial.
Nesses termos, concebe-se a democracia como um processo orientado à transformação. Processo este que se opõe à construção social alicerçada no status quo e foge da posição individual e egoísta para atuar em favor de uma posição coletiva, fundada exclusivamente em um processo de construção e reflexão coletivas. Daí a defesa intransigente por uma democracia deliberativa que inclua os cidadãos no processo de tomada de decisões.
Essa perspectiva de democracia nos mostra, portanto, em primeiro lugar que não há democracia sem povo e, em segundo lugar, que só pode haver democracia com a necessária participação direta e igualitária dos cidadãos nos assuntos coletivos de sua comunidade.
No entanto, no Brasil, a falta de mecanismos de participação direta do povo na vida político-institucional do país e a falta de amplos mecanismos de controle popular sobre os representantes do povo demonstram como a atual representação política continua distante e separada dos cidadãos. Esse arranjo institucional distante e separado do povo ignora o elemento mais fundamental de uma discussão que busca dar conteúdos e limites à vida pública do país – o próprio povo. É um sistema institucional que se diz democrático, mas é avesso ao povo. É uma representação política que padece de demofobia. É uma contrafação do princípio democrático e um falseamento do princípio republicano[2]. Quando se alija o povo de um diálogo sobre seu país e deixam-se as principais decisões de uma comunidade somente nas mãos de representes e agentes governamentais distantes do povo, nega-se o fundamento da própria Constituição – o de que todo o poder emana do povo e por ele também deve ser exercido diretamente.
Enquanto essas distorções permanecerem, continuaremos a ser uma democracia bloqueada e sem povo e a palavra democracia continuará a ser mero substantivo retórico.


[1] Miguel Gualano de Godoy é Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro do Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia da UFPR. Pesquisador Visitante na Universidade de Harvard. Advogado.
[2] COMPARATO, Fábio Konder. Brasil: verso e reverso constitucional. Disponível em: http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/25-anos-da-constituicao

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Crítica a Ferrajoli e ao neoconstitucionalismo

Excelente artigo do querido amigo e Prof. de Direito Constitucional da UBA Lucas Arrimada. Uma crítica perspicaz ao Prof. Luigi Ferrajoli e ao neoconstitucionalismo.

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JUEVES, 13 DE FEBRERO DE 2014

Criticando a Ferrajoli: Mayorías legislativas como minorías contramayoritarias


El constitucionalismo político tradicional tiene un claro perfil liberal, a veces más autoritario, a veces más republicano, pero siempre antimayoritario. El llamado neoconstitucionalismo asimiló ese perfil y lo incorporó a una teoría del derecho con gran proyección sobre el derecho constitucional  y filosofía del derecho hispanoamericano. Es razonable que esa corriente tenga como central objetivo el ideal de limitar el poder político e institucional, desconfiar del poder en su versión estatal. A pesar de empatizar con parte de su ideario progresista, en lo respectivo a la protección de los derechos civiles y políticos y muchos otros temas, podemos pensar que hay algunas imprecisiones conceptuales que pasamos a identificar.

tres tristes tigres genoveses - Génova 2014

Uno de sus representantes más notables del neoconstitucionalismo, Luigi Ferrajoli, es enfático en la necesidad de poner límites a los “Poderes Salvajes” (Ferrajoli:2011, Ferrajoli y Ruiz Manero: 2012) sobre lo que llama "mayorías contingentes" y sobretodo en los sistemas políticos en crisis por presidencias hegemónicas.  Las democracias constitucionales necesitan, según el autor, de esos límites constitucionales antimayoritarios que les son propios y característicos. Contra estos riesgos, de sistemas políticos que se vuelven una amenaza a los derechos fundamentales, ya sean libertades clásicas o de los derechos sociales que son precondición para una democracia robusta, se alzan clásicamente los tribunales constitucionales y el poder judicial (en los sistemas de control difuso de constitucionalidad) para poner límites y resguardarlos esa órbita de lo indecidible, eso que debería estar más allá de las decisiones de una generación coyuntural, de una mayoría política eventual o de un gobierno irracional.

En un diálogo de los Profesores Ferrajoli y Ruiz Manero se afirma: “La primera es que el carácter vago y valorativo de los principios vale para sustraer las decisiones sobre los valores compartidos en una determinada comunidad a las decisiones de mayorías contingentes. De acuerdo. Observo, sin embargo, que la sustracción al juego de mayorías y minorías de las decisiones interpretativas sobre tales valores, sea cual sea el grado de indeterminación de los principios que los expresan, se encuentra asegurado, todavía más rígidamente, por mi constitucionalismo garantista.” (Ferrajoli y Ruiz Manero, 2012:84). Especialmente, sigue Ferrajoli “Cuanto más las mayorías contingentes de las generaciones presentes reivindican, como sucede por ejemplo en Italia, su omnipotencia y hacen ostentación de su inclinaciones anti-constitucionales” (Ferrajoli y Ruiz Manero, 2012: 84).

Aprovecho ese punto de partida para matizar las afirmaciones de muchos neoconstitucionalistas postpositivistas sobre las mayorías amenzantes, sobre la democracia feroz y desbocada, sobre las mayorías descontroladas  violando derechos a diestra y siniestra. Ferrajoli parece reafirmar su desconfianza a la democracia y justificar así la impronta de “las mayorías son peligrosas”. Justamente eso es lo extraño. La desconfianza hacia las mayorías es lo que produjo sistemas contramayoritarios a nivel institucional.  De esta forma, cabe remarcar lo que se suele olvidar: el sistema institucional de la grandísima mayoría de los países, comenzando por los países presidencialistas pero también en los países parlamentarios -aunque sus sistemas se hayan presidencializados- diseñaron sistemas contramayoritarios. Los sistemas representativos hacen a los representantes "una aristocracia electa". Esto es: Las mayorías de las que desconfían los neoconstitucionalistas no son las mismas mayorías que le generaban tanta desconfianza a Madison o cualquier de los "Founding Fathers" en Estados Unidos o los padres fundadores latinoamericanos. Esa desconfianza no debe estar dirigida hacia la mayorías en la sociedad, sino a las mayorías parlamentarias o a los congresistas en el sistema político, incluso cuando  esas mayorías son controladas por uno o dos líderes en el ejecutivo de turno. Esas, en rigor de verdad, son minorías políticas en un sistema contramayoritario. No son mayorías sociales, no es la sociedad la que amenaza, es el sistema político en nombre del pueblo, de la sociedad. Se confunde mayorías en una sociedad con mayorías legislativas.Las mayorías legislativas son minorías políticas en un sistema contramayoritario. Esos sistemas contramayoritarios suelen concentrar el poder en líderes personalistas que manejan esas mayorías con mayor o menor dificultad. El populismo institucionalizado a nivel social y político debe ser diferenciado de la democracia como práctica social, como aspiración de un sistema político inclusivo y deliberativo.

Las mayorías no toman las decisiones, salvo en los plebiscitos o procesos similares de participación social establecida y esa afirmación también merece ser puesta en duda. En los plebiscitos las mayorías no deciden la pregunta ni pueden condicionar la discusión política previa a la votación, ni los puntos a debatir ni el tiempo necesario para la deliberación inclusiva y política. Los plebiscitos pueden fácimente manipularse desde esas minorías institucionales para darle un aire democrático a una decisión inducida desde la minoría gobernante. Lo mismo en el ejercicio de gobierno, las mayorías electorales que votaron a un gobierno y le delegaron el poder, no toman las decisiones ni pueden impedir que ese gobierno tome una decisión autonóma. La autonomía relativa del sistema político sobre la voluntad de sus representados es una de las características de los sistemas políticos a nivel comparado.

Las "mayorías" que merecen ser temidas y desconfiadas en el pensamiento constitucional actual son las minorías políticas en instituciones contramayoritarias que toman decisiones contramayoritarias en nombre de las mayorías. En contraste a lo que el neo/constitucionalismo, se debe desconfía de una mayoría parlamenteria contingente, a veces, en órganos claramente antimayoritarios y antidemocráticos como un Senado o una cámara alta, de un parlamento divido. Realizar esa distinción permitiría reconstruir un neo/constitucionalismo más afín a una teoría mayoritaria y democrática. De otra forma, el neoconstitucionalismo está condenado a repetir los errores del constitucionalismo antidemocrático tan característico del Siglo XVIII y XIX (especialmente en latinoamérica) con su desconfianza a la deliberación pública y a la democracia política en el Siglo XXI.

El neonconstitucionalismo así, se diferenciaría de su doble, el constitucionalismo liberal y antimayoritario. Sin duda, al profundizar algunos autores, y acá mi segundo matiz, vemos que el principialismo de Ruiz Manero está mucho más abierto, según entiendo, a ese modelo deliberativo y de política democrática que el modelo garantista de Ferrajoli. Estos dos enfoques tienen más de parecidos que de diferencias, tanto en el plano teórico como ideológico, quizás más de lo que Ferrajoli está dispuesto a reconocer. Lo que sabemos es que Ruiz Manero (Ruiz Manero y Ferrajoli, 2012:84), sostiene, estar abierto a que su versión de constitucionalismo principialista sea definido por futuras generaciones en un juego institucional abierto, mientras que Ferrajoli parece que tiene, al mismo tiempo, una doble confianza en precisar el derecho con técnica legislativa y en poder acotar la discrecionalidad de la aplicación jurisdiccional del derecho. De esta forma, al menos, aparentemente, la esfera de "lo indecidible" (lo que las mayorías no puede afectar de todo texto constitucional) en Ferrajoli está más cerrada y hermética al cambio, a su transformación. Ferrajoli dirá que está cerrado para su protección, por supuesto, y así la discusión continuará. Esta es una mera introducción.

Como un buen ejemplo de lo que tratamos de comentar, les dejamos esta entrevista realizada a Luigi Ferrajoli sobre "El Derecho ante la crisis de la democracia". Interesante para escuchar y pensar el contrapunto. Sigamos y salud.
http://www.antelaley.com/2014/02/criticando-ferrajoli-mayorias.html

Entrevista com o Prof. José Rodrigo Rodriguez

Entrevista do Prof. José Rodrigo Rodriguez sobre seu novo livro "Como Decidem as Cortes: para uma crítica do direito (brasileiro)"

http://www.youtube.com/watch?v=eSqPUHqEuuE#t=47

O exemplo do Ministro da Corte Constitucional da África do Sul

Na sequência da indicação do Prof. Conrado Hubner Mendes sobre o trabalho comparativo entre as Cortes do Brasil, Índia e África do Sul, fica a lição de uma vida teórica e prática de luta em favor das diferenças. O exemplo do Ministro da Corte Constitucional da África do Sul.

Por Saul Tourinho Leal
11.02.14

“Eu tenho HIV!”, revelou o ministro da Corte Constitucional


Não basta tolerar aquilo que nos agrada. Devemos respeitar o que nos choca, pois esse choque costuma ser sustentado pelo preconceito ou pelo medo do que nos é estranho. Uma cultura forte de respeito à diversidade nos convida à adaptação às diferenças, a respeitá-las, celebrá-las e seguirmos unidos, dentro das nossas distinções.
A África do Sul traz o compromisso com a diversidade no preâmbulo constitucional. O país tem tentado cumprir esse propósito. Nessa trajetória, surge mais uma personalidade cuja história de vida prova até onde a celebração das diferenças deve ir. Falo de Edwin Cameron, aquele para quem “a Constituição inteira está enraizada na noção de que nossas diferenças são valiosas em si mesmas, e enriquecedora para nós como sul-africanos”. Ele lançou recentemente o livro “Justice. A personal Account”, ainda sem tradução no Brasil, inspirador desse texto.
O pai de Edwin Cameron era um homem violento, alcoólatra, que passou parte da vida na cadeia. Ele não conseguia se manter empregado e a cada demissão a situação da família se debilitava. Eles moravam em Pietermaritzburg, capital da província de KwaZulu-Natal. Sua mãe viveu uma vida de miséria, tentando sustentar a família como costureira. Eles não tinham casa.
A irmã mais velha, Laura, morreu quando Edwin Cameron estava com oito anos. A outra irmã, Daphen, ele sequer chegou a conhecer. Antes dele nascer, ela foi entregue à adoção, aos quatro meses de idade. Ele tinha mais uma irmã, Jeanie, que morava com a família. Cameron teve acesso à universidade e chegou a estudar em Oxford graças a bolsas para jovens brancos pobres, num programa de ação afirmativa. Ele é gay. Em 1986, descobriu que era portador do HIV.
A infância de Edwin Cameron foi dura. Certo dia ele gritou por alguma razão em sua casa. O pai falou: “Se você gritar como uma menina, vai ter que se vestir como uma menina!”. Ele repetiu a atitude. Apesar das lágrimas, mesmo esperneando e gritando, foi forçado pelo pai a vestir um dos vestidos de sua irmã. Em seguida, foi arrastado até o jardim para que os vizinhos o vissem. “Lá ele repetiu que garotos não devem gritar como garotas. Corri para dentro o mais rápido que pude, para livrar meu corpo daquela roupa de mulher que me foi imposta vergonhosamente” – desabafa o hoje ministro da Corte Constitucional.
Aquele garoto se transformou num advogado. No mês em que começou sua prática, ele se mudou para uma pequena casa alugada com o seu primeiro parceiro, Wilhelm Hahn, professor de arquitetura da Universidade de Wits. Menos de dois anos depois, Hahn mudou-se para os Estados Unidos. Posteriormente, Cameron foi infectado pelo HIV.
Passados vinte anos, Wilhelm retornou à África do Sul, onde morreu de câncer de próstata, em março de 2008. “Senti o privilégio de estar ao seu lado dois dias antes de sua morte. Fomos capazes de expressar profundamente o quão cuidamos um do outro e como o nosso amor tinha sido, e ainda era, de suma importância para as nossas vidas” – anota o ministro, confidenciando ainda: “Eu resolvi que eu nunca mais iria me desculpar por algo tão profundamente intrínseco à minha natureza, que me faz ser o que eu sou como ser humano. Eu nunca mais iria pedir desculpa por ser gay!”.
Edwin Cameron tem a voz firme, gestos sutis e uma elegância que lembra o ar aristocrático dos “gentlemans” ingleses. Bem alto e de corpo esguio, ele exibe uma face alva, com uma barba impecavelmente feita, olhos claros e uns poucos cabelos brancos em torno de uma cabeça calva. Usando gravatas com estampas em cores fortes, o ministro não vê embaraço em falar sobre a AIDS.
Numa tarde de sexta-feira, dia 19 de dezembro de 1986, ele recebeu uma ligação do seu médico, que disse que ele tinha o HIV. “Nunca é bom ser diagnosticado com uma doença fatal, mas parecia um momento particularmente ruim para mim” – recorda. Cameron estava com 33 anos e seguia sua carreira como advogado na área de direitos humanos.
Ele já havia visto muitos amigos morrerem em razão da doença: “Eu os tinha visto perderem peso, ficarem fracos e morrerem, com os olhos grandes e magros, em casa, asilos e em hospitais. Eu tinha visto suas famílias e os médicos impotentes. Os jovens, principalmente. No auge de suas vidas. Assim como eu” – diz.
Cameron prossegue numa atmosfera de profunda sinceridade e intimidade: “O pior de tudo era o sentimento de vergonha que eu sentia. Eu tinha vergonha de ter o HIV. Mais do que vergonha. Horror. Horror do organismo que tinha infectado o meu sangue e meu corpo. O HIV me fez sentir contaminado. Contaminado. Sujo. Imundo, poluído, impuro”.
Edwin Cameron sobreviveu. Tendo mantido seus tratamentos, o advogado persistiu construindo sua carreira de defesa dos direitos humanos e do enaltecimento da diversidade na África do Sul. Em 2009, foi indicado para a Corte Constitucional do país.
O ministro lembra de quando, no processo de indicação e nomeação, se encontrou com o Presidente da Corte, Arthur Chaskalson. Ele chegou ao gabinete da presidência e aceitou uma xícara de chá. Foi quando disse: “Arthur, você sabe que eu fui nomeado. Mas eu preciso dizer uma coisa: eu tenho HIV!”. Um olhar de choque apareceu no rosto do presidente. Mesmo assim, Arthur o encorajou a aceitar o posto e seguir seu caminho ajudando a construir uma África do Sul mais atenta ao seu compromisso com a diversidade.
Além de falar na diversidade, a Constituição sul-africana assegura a liberdade de orientação sexual: “Não existe nenhuma outra constituição em qualquer lugar do mundo que tenha expressamente mencionado essas duas palavras” – diz, entusiasmado, Edwin Cameron. Para ele, “os temores de que o constitucionalismo seria um fenômeno de elite, confinado a advogados idealistas, têm-se revelado completamente errados. O constitucionalismo é uma das forças mais poderosas em todos os níveis de nossa política e debate nacional” – afirma.
Ele fala pela sua perspectiva de homem orgulhosamente gay, alguém que cresceu com medo e vergonha da sua própria sexualidade, e que agora serve o seu país sem ser desqualificado por ser quem é. “A lei me ofereceu a chance de remediar e reparar a minha vida. A Constituição nos oferece a oportunidade de reparar e corrigir o nosso país” – arremata.
Aquela criança assombrada por um pai violento, tornou-se um jovem consciente da sua orientação sexual e, hoje, um adulto que contribui com a humanização dos debates constitucionais ao redor do mundo. Bem vindos à experiência rica e única que é conhecer um pouco mais da jurisdição constitucional da África do Sul.
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Saul Tourinho Leal, doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, foi pesquisador-visitante na Universidade Georgetown no inverno de 2012. Seus estudos sobre Direito e Felicidade foram mencionados pelo ministro Celso de Mello, do STF, que os qualificou como “preciosos” no leading case que reconheceu o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (ADPF 132). É membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB e autor dos livros Ativismo ou Altivez? O outro lado do STF (Fórum, 2010); Controle de Constitucionalidade Moderno (Impetus: 2010); e Katiba – Vivendo o Sonho do Quênia: O constitucionalismo da esperança na África contemporânea (Impetus: 2013).
O presente artigo faz parte da série Jurisdição Constitucional na África do Sul.

http://www.osconstitucionalistas.com.br/eu-tenho-hiv-revelou-o-ministro-da-corte-constitucional

Livro para download - Comparação entre as Cortes do Brasil, Índia e África do Sul

Excelente dica do Prof. Conrado Hubner Mendes.

Book for download:
Transformative constitutionalism: Comparing the apex courts of Brazil, India and South Africa

http://www.pulp.up.ac.za/cat_2013_12_download.html

Cass Sunstein e regulação

Artigo fresquinho e super interessante de Cass Sunstein a partir de sua experiência na Casa Branca como Chefe do Escritório de Regulação norte-americano.

http://columbialawreview.org/the-real-world-of-cost-benefit-analysis-thirty-six-questions-and-almost-as-many-answers/

STF e deliberação

"O aperfeiçoamento das práticas deliberativas do STF deve passar por reformas justificadas por essa preocupação de fazer o tribunal se pronunciar como uma unidade institucional, as quais não envolvem, pelo menos em princípio, a suspensão das transmissões dos julgamentos pela TV Justiça. Tais reformas exigirão uma série de aperfeiçoamentos nos diversos aspectos que caracterizam o peculiar modelo brasileiro de deliberação, em especial o formato de apresentação pública do resultado do julgamento."

http://www.osconstitucionalistas.com.br/e-preciso-repensar-a-deliberacao-no-supremo-tribunal-federal

Por André Rufino Vale
1.02.14

É preciso repensar a deliberação no Supremo Tribunal Federal


O próximo 3 de fevereiro marcará o início de mais um ano judiciário, com a já tradicional cerimônia de abertura no Plenário do Supremo Tribunal Federal, onde estarão reunidas as principais autoridades dos três Poderes da República para, entre outras solenidades, destacar os avanços, diagnosticar os problemas e traçar as metas para o aperfeiçoamento das atividades do Judiciário neste ano de 2014. Entre os vários possíveis temas que estão a merecer maior atenção no momento, talvez o que esteja a cobrar um maior espaço no debate público seja o referente à deliberação no Supremo Tribunal Federal.
É cada vez mais notória entre os juristas a percepção de que algo não vai bem com a prática deliberativa do STF. Não obstante, apesar de ser crescente a noção quanto a alguns sintomas mais agudos – como como atestam os múltiplos comentários que nos últimos meses vieram a público sobre os “julgamentos midiáticos”, os “votos extremamente extensos”, “o sensacionalismo” etc. –, o diagnóstico dos efetivos problemas que podem ser constatados na prática deliberativa do STF[1] parece estar distante de constituir uma pauta para debates mais produtivos.
O resultado tem sido um exagerado gasto de energia com o tema da transmissão dos julgamentos pela TV Justiça, que parte do pressuposto – muitas vezes equivocado – de que a comunicação televisiva representa o único ou o principal fator responsável pelos perceptíveis déficits de deliberação nos julgamentos do STF. Alegações sem base empírica e discussões pouco aprofundadas têm levado ao número cada vez maior de adeptos às propostas de suspensão da transmissão ao vivo dos julgamentos, o que culminou no já amplamente conhecido projeto de lei que, protocolado na Câmara dos Deputados em dezembro passado, pretende acabar com essas transmissões.
É inegável que a TV Justiça representa um elemento relevante na atual prática deliberativa do STF e que precisa fazer parte das análises e dos debates que sobre o tema devem se produzir. Mas resumir e limitar a discussão à sua existência e à sua atividade de transmissão ao vivo dos julgamentos é menosprezar em demasia o potencial que o tema da deliberação possui para ser estudado e levar às reformas hoje necessárias nas práticas de julgamento do STF.
As práticas de deliberação das Cortes Constitucionais variam conforme os distintos desenhos institucionais que cada sistema pode assumir e que estão primordialmente relacionados, entre outros fatores, (1) ao ambiente institucional onde ocorrem as deliberações, que podem ser fechados ou secretos, por um lado, e abertos ou públicos, por outro; e à (2) apresentação institucional dos resultados da deliberação, as quais podem ocorrer em texto único, conforme o modelo de decisão per curiam, ou por meio de texto composto, que corresponde ao modelo de decisão seriatim. A atual prática do STF conforma um modelo bastante peculiar de deliberação aberta ou pública que adota o modelo de decisão seriatim e que faz parte da histórica tradição de julgamentos da Corte. Basta uma consulta rápida às principais obras sobre a história do STF para se constatar que, já nos seus primeiros anos de funcionamento, nos julgamentos mais rumorosos o tribunal se transformava em verdadeiro “teatro” aberto ao público, o qual lotava a sala das sessões para aplaudir as sustentações orais de advogados como Rui Barbosa e se manifestar a favor ou contra um ou outro voto, muitas vezes sob as advertências do presidente[2].
A atual pretensão de se construir um debate em torno do papel da TV Justiça e verificar o seu impacto na argumentação jurídica produzida no Plenário do STF teria que envolver todos os aspectos desse modelo de deliberação, especialmente o da publicidade, para o qual a transmissão televisiva representa, observe-se bem, apenas um meio adicional de comunicação. No contexto mais amplo da publicidade dos julgamentos, a suspensão das transmissões televisivas seria um mero paliativo, pois remanesceriam os demais veículos de divulgação das atividades do tribunal, como a Rádio Justiça, o Canal do STF no You Tube e a onipresente imprensa especializada. Se quisesse ser de fato coerente e responsável por todas as suas consequências, o discurso que defende a suspensão das transmissões dos julgamentos teria que também justificar, com os mesmos argumentos, a eliminação de todos os canais de divulgação em tempo real das deliberações plenárias. E observe-se que ainda assim poderia ser falacioso, pois a eventual suspensão de todos esses mecanismos de comunicação não impedirá que uma sala de sessões lotada de juristas, de profissionais da imprensa e do público em geral possa causar tanto impacto na postura deliberativa de cada ministro quanto as transmissões televisivas. Para uma teoria da argumentação jurídica, as influências externas nas interações argumentativas entre os juízes podem ter causas muito semelhantes entre si em se tratando do telespectador ou do público presente no Plenário. O problema então seria, no fundo, a publicidade dos julgamentos, em todos os seus aspectos, e não apenas as transmissões pela TV Justiça.
Assim, levado às últimas consequências, esse discurso teria que defender a adoção de um genuíno modelo fechado ou secreto de deliberações, utilizando-se dos modelos institucionais que são referência no direito comparado, como os praticados em tribunais constitucionais europeus, em especial os da Alemanha, da Itália, da Espanha, de Portugal, entre outros. Nesse caso, poderia encontrar a barreira estabelecida pelo art. 93, IX, da Constituição. Mas se ainda assim o fizesse, não deveria deixar de considerar que mesmo nesses modelos secretos ou fechados os tribunais deliberam sob os olhares atentos da imprensa, que se utiliza de diversos mecanismos – em alguns casos não necessariamente legítimos – para obter informações sobre tudo o que se passa no interior do ambiente fechado das deliberações, e muitas vezes consegue saber de detalhes tão fidedignos quanto aqueles que poderiam ser alcançados nos sistemas que adotam a publicidade dos julgamentos, e que não raro podem exercer alguma influência na argumentação jurídica desenvolvida reservadamente entre os magistrados.
É preciso entender, portanto, que “julgamentos midiáticos” podem existir em qualquer modelo de deliberação, público ou secreto, e que as propostas de soluções meramente paliativas, como a suspensão das transmissões televisivas, não agregam nada de substancial à necessária construção de um profundo debate sobre esse interessante tema. O aperfeiçoamento das práticas deliberativas dos tribunais constitucionais não exige impreterivelmente soluções de “tudo ou nada”, como o fechamento dos modelos públicos ou a abertura dos modelos fechados. Ele pode ser alcançado pelo paulatino desenvolvimento de uma série de práticas internas de interação colegiada que visem produzir uma maior qualidade das trocas argumentativas entre os juízes, cujo resultado é a construção de decisões melhor fundamentadas.
Tudo parece indicar que as principais questões sobre a deliberação no STF devem ser buscadas, entre outros aspectos institucionais, na atual configuração do modelo de decisão seriatim que é praticado no tribunal, e que, ressalte-se novamente, pouco ou nada seria alterado se eventualmente fossem suspensas as transmissões ao vivo dos julgamentos. Em contraste com o modelo de decisão per curiam, que privilegia a apresentação do resultado da deliberação como “opinião do tribunal” em texto único, o modelo de decisão seriatim se caracteriza pela produção de um agregado das posições individuais de cada membro do colegiado, cujos votos são expostos “em série” em um texto composto — aí está o significado do termo em latim seriatim. Nos tribunais que adotam esse modelo, a deliberação comumente não se desenvolve com o objetivo de produzir um texto final com uma única ratio decidendi que possa representar a posição institucional da Corte – unívoca e impessoal –, mas como uma proclamação sucessiva das decisões individuais dos membros do tribunal, normalmente precedidas de um discurso que cada juiz tem o direito de fazer, seja por meio de um texto escrito por ele preparado previamente ou por meio da improvisação oral, para apresentar publicamente sua própria argumentação e seu julgamento individual do caso. O resultado da deliberação é apresentado em texto composto pelos diversos votos e suas respectivas ratio decidendi, tornando bastante complicada em algumas ocasiões a tarefa de definir com precisão o fundamento determinante da decisão do tribunal, a qual normalmente pode ser realizada pela extração do “mínimo comum” entre os distintos argumentos individuais. Na prática, uma das consequências da adoção desse modelo é a maior importância que adquirem as ratio decidendi de cada juiz individualmente consideradas para a técnica de precedentes. Cada juiz passa a estar mais vinculado a suas próprias decisões e argumentos, de modo que não é estranha a esses sistemas a produção de um “overruling pessoal”, na hipótese em que determinado juiz tenha que rever seu próprio posicionamento.
Atualmente, talvez seja a prática deliberativa do Supremo Tribunal Federal do Brasil um dos exemplos mais claros e fidedignos desse modelo de decisão seriatim e de publicação dos resultados da deliberação em forma de texto composto. E é bem provável que ela remanesça como uma das poucas práticas que ainda mantém, de modo bastante íntegro, as mencionadas características desse modelo seriatim, visto que outros tribunais, que um dia também chegaram a adotá-lo, posteriormente promoveram amplas reformas que o modificaram ou o substituíram por completo em seus procedimentos de julgamento, ou pelo menos estão discutindo profundamente a necessidade de sua alteração. O modelo de decisão seriatimcorresponde à tradição dos órgãos judiciais colegiados do Common Law, como o King’s Bench, cujas sessões deliberativas ficaram caracterizadas pelo pronunciamento “em série” (seriatim) dos discursos (speech) individuais de cada juiz, os quais eram dessa forma consignados nos textos das decisões destinados à publicação (published reports)[3]. O costume britânico de proferir e publicar decisões na forma de seriatim opinions foi incorporado pela Câmara dos Lordes (House of Lords), que, no exercício da função judicial pela Law Lords – ressalte-se, sempre considerada não muito distinta daquela exercida por um organismo legislativo, como é aHouse of Lords –por muito tempo manteve a prática de se manifestar através do conjunto das decisões individuais de cada juiz, as opinion of the Lords. Esse tradicional modelo sofreu algumas modificações no recente ano de 2009, com a criação da Supreme Court of the United Kingdom, a qual assumiu as funções judiciais antes exercidas pela Law Lords e incorporou uma prática de apresentação institucional do resultado de suas deliberações que ainda proclama as opiniões dos Lordes, mas que desde então passou a ser alvo de contundentes críticas e, muito provavelmente, deve ser objeto de alguma reforma que o torne mais próximo dos modelos per curiam.
Um exemplo claro de alteração desse modelo por meio do desenvolvimento de práticas alternativas de deliberação pode ser encontrado na história da Suprema Corte norte-americana. Nos seus primeiros anos de funcionamento – precisamente entre os anos de 1793 e 1800 –, seguindo o costume judicial inglês, a Suprema Corte norte-americana anunciava suas decisões através das seriatim opinions de seus membros[4]. Cada Justice pronunciava seu voto individualmente e o conjunto de todas as opiniões expostas “em série” era assim apresentado ao público. Quando John Marshall se tornou Chief Justice, a Corte passou a adotar a prática de anunciar seus julgamentos em uma single opinion, que dessa forma passava a representar a opinião expressada pela maioria de seus membros. A partir de 1801, os Justicesdeixaram paulatinamente o costume de proclamar individualmente seus votos e passaram a estar mais comprometidos com a representação da unidade institucional da Corte, através da construção colegiada de uma única decisão, a opinion of the Court, dotada de uma única ratio decidendi. A redação seria então incumbida ao Chief Justice, que no caso era Marshall, mas o texto deveria expressar, em vez de sua posição pessoal, a opinião do colegiado de juízes, o qual teria que falar em uma só voz (speak in one voice). Essa inovação na prática deliberativa dos Justices demonstrou-se crucial para a afirmação da Suprema Corte como unidade institucional em face dos demais Poderes, num contexto político conturbado que marcou os primórdios da república norte-americana, e foi reconhecida posteriormente como um dos grandes feitos da histórica carreira de Marshall[5].
Este é apenas um exemplo. Existem outros mais, mas não é necessário dar continuidade a esse relato. O fato é que o modelo de decisão seriatim praticado no STF tem dado sinais claros de esgotamento e talvez este seja o momento oportuno para se começar a refletir sobre a necessidade de sua reforma. As experiências históricas de outras Cortes Constitucionais que um dia adotaram o mesmo modelo, mas que em algum momento o substituíram ou o modificaram, ou pelo menos estão produzindo um debate sobre a necessidade de sua reforma, podem trazer algumas luzes para o debate. Não se trata de importar modelos estrangeiros, mas de conhecer e compreender o fato de que, invariavelmente, as Cortes Constitucionais que adotam esse modelo de decisão mais cedo ou mais tarde acabam sentindo, na prática, a necessidade de reformá-lo de algum modo que resulte em mais unidade de seu órgão colegiado e lhe permita falar com uma só voz. A unidade institucional do corpo deliberativo, independente das figuras individuais de cada magistrado, acaba sendo percebida como um requisito indispensável para a autoridade jurisdicional e o prestígio político e social de uma Corte.
O aperfeiçoamento das práticas deliberativas do STF deve passar por reformas justificadas por essa preocupação de fazer o tribunal se pronunciar como uma unidade institucional, as quais não envolvem, pelo menos em princípio, a suspensão das transmissões dos julgamentos pela TV Justiça. Tais reformas exigirão uma série de aperfeiçoamentos nos diversos aspectos que caracterizam o peculiar modelo brasileiro de deliberação, em especial o formato de apresentação pública do resultado do julgamento. Este não é momento nem o lugar para apresentar e justificar propostas de reforma, mas é possível antecipadamente vislumbrar que muito em breve chegará a hora de se rever, por exemplo, o formato dos acórdãos, especialmente das ementas. O ano judiciário que agora se inicia pode ser uma boa oportunidade para se refletir sobre todos esses aspectos e repensar os desenhos institucionais da deliberação no STF.
_________
André Rufino do Vale é editor chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional.
Artigo publicado originalmente na revista Consultor Jurídico, edição 1º/2/2014.
Foto: Carlos Humberto/SCO/STF (1º/2/2013).
Notas:
[1] Um levantamento preliminar (não exaustivo) de problemas, como hipóteses de trabalho de pesquisa empírica, está apresentado em: VALE, André Rufino do. A deliberação no Supremo Tribunal Federal: ensaio sobre alguns problemas e perspectivas de análise teórica. In: FELLET, Andre; NOVELINO, Marcelo (org.). Constitucionalismo e Democracia. Salvador: Juspodivm; 2013, pp. 329-348.
[2] COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2ª Ed. São Paulo: Ieje; 2007, pp. 35-36
[3] ZOBELL, Karl M. Division of Opinion in the Supreme Court: a history of judicial disintegration. In: Cornell Law Quaterly Review, vol. 44, 1958-1959, pp. 187-192.
[4] ZOBELL, Karl M. Division of Opinion in the Supreme Court: a history of judicial disintegration. In: Cornell Law Quaterly Review, vol. 44, 1958-1959, pp. 186-214.
[5] ZOBELL, Karl M. Division of Opinion in the Supreme Court: a history of judicial disintegration. In: Cornell Law Quaterly Review, vol. 44, 1958-1959, pp. 193-194. Sobre os primeiros anos de Marshall na Suprema Corte e seu papel na construção da nova prática das opinion of the Court, vide: HASKINS, George L. Law versus politics in the early years of the Marshall Court. In: University of Pennsylvania Law Review, vol. 130, 1981-1982, pp. 1-27.

Giorgio Agamben - Como a obsessão por segurança muda a democracia

O artigo saiu é do começo do mês janeiro. Excelente!

"Os procedimentos de exceção visam uma ameaça imediata e real, que deve ser eliminada ao se suspender por um período limitado as garantias da lei; as “razões de segurança” de que falamos hoje constituem, ao contrário, uma técnica de governo normal e permanente."

"Em matéria de segurança, a legislação hoje em vigor nos países europeus é, em certos aspectos, sensivelmente mais severa do que a dos Estados fascistas do século XX. "

"A crescente multiplicação de dispositivos de segurança testemunha uma mudança na conceituação política, a ponto de podermos legitimamente nos perguntar não apenas se as sociedades em que vivemos ainda podem ser qualificadas de democráticas, mas também e acima de tudo se elas ainda podem ser consideradas sociedades políticas."

"Antes limiar da politização ativa e irredutível, a cidadania se tornou uma condição puramente passiva, em que a ação ou a inação, o público e o privado se desvanecem e se confundem. O que se concretizava por uma atividade cotidiana e uma forma de vida se limita hoje a um estatuto jurídico e ao exercício de um direito de voto cada vez mais parecido com uma pesquisa de opinião."

"O Estado em que vivemos hoje na Europa não é um Estado de disciplina, mas – segundo a expressão de Gilles Deleuze – um “Estado de controle”: ele não tem por objetivo ordenar e disciplinar, mas gerir e controlar."

"Se quisermos interromper o desvio antidemocrático do Estado securitário, o problema das formas e dos meios de tal potência destituinte constitui a questão política essencial que nos fará pensar durante os próximos anos."


http://diplomatique.org.br/artigo.php?id=1568

Não vai ter copa (?)

Não vai ter copa? Sobre os críticos dos críticos da Copa.

No mundo onde cresci, protestar contra violações é ser de esquerda

 Os protestos convocados não são, em sua essência, contra a realização em si da Copa. Esta não é a reivindicação central. É, como dito, uma palavra de ordem mais de caráter simbólico do que prático. O ponto fundamental das manifestações são as violações a direitos causadas pelos eventos esportivos, que são muitas, inúmeras, e gravíssimas
29/01/2014
Por Igor Ojeda

Assombrosas algumas das reações aos protestos que questionam a organização da Copa do Mundo no Brasil. Não por apontarem incoerências, contradições ou desacordos com os manifestantes, mas por qualificá-los de antemão como terroristas ou “contra o Brasil”. Reações que partem do fígado são muitas vezes assim, acabam turvando a realidade. E esse profundo ciclo de desinformação (intencional ou não), requer, a meu ver, algumas pontuações:

1- O famoso “Não vai ter Copa” é um slogan, muito mais de sentido simbólico do que prático. Podemos concordar ou discordar, achá-lo adequado ou não, certeiro ou irresponsável. Mas é um slogan. E está sendo espalhado por aí pela metade. Na verdade, ele completo é “Se não tiver direitos, não vai ter Copa”.

2 - Os protestos convocados não são, em sua essência, contra a realização em si da Copa. Esta não é a reivindicação central. É, como dito, uma palavra de ordem mais de caráter simbólico do que prático. O ponto fundamental das manifestações são as violações a direitos causadas pelos eventos esportivos, que são muitas, inúmeras, e gravíssimas. No mundo onde cresci, violações a direitos são ações de direita. Protestar contra essas violações é uma ação de esquerda. E absolutamente legítima. De qualquer forma, mesmo que o foco principal fosse o cancelamento do evento, por tudo que ele representa em abusos, isso também seria legítimo.

3 - Não existe determinado grupo, organização, partido, ONG ou governo estrangeiro “por trás” desses protestos. Afirmar isso, ainda mais de forma categórica, é extremamente leviano. As manifestações são compostas por uma gama de movimentos e organizações legítimas, que têm em comum a opção por lutar contra os abusos decorrentes da realização da Copa do Mundo.

4 - Os protestos não são dos Black Blocks. Os Black Blocks não são os protestos. Ponto. Não é o caso de entrar no mérito sobre a legitimidade ou não desse tipo de tática neste momento, simplesmente porque os movimentos que questionam os megaeventos esportivos NÃO apostam na violência como forma de luta. Generalizar, tomar a parte como o todo para desqualificá-los é usar o mesmíssimo expediente da direita para desqualificar os atos contra os aumentos das passagens de ônibus e muitos outros protestos legítimos do presente e do passado. Pior ainda quando para tal desqualificação se usa a grande mídia e suas reportagens e imagens “editadas” como principal e exclusiva fonte de informação, como vem acontecendo muito frequentemente.

5 - Há anos, formou-se e consolidou-se, em todas as 12 cidades-sede, Comitês Populares da Copa, que se juntaram na Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop). Eles conformam uma extensa rede de movimentos de atingidos pelos grandes eventos esportivos, movimentos sociais, sindicatos, movimentos estudantis, advogados populares, urbanistas e ONGs que serve para dar coesão à luta contra as violações causadas por tais megaeventos.

6 - Não é de agora: há vários anos esses comitês da Copa e a Ancop desenvolvem um criterioso trabalho de levantamento e sistematização dessas violações. Isso serve para se organizar a resistência e, inclusive, propor soluções para enfrentá-las. Algumas resistências até já foram vitoriosas.

7 - Um extenso e sério dossiê sobre violações aos direitos humanos no âmbito da realização da Copa e das Olimpíadas é um dos resultados desse esforço. Ele pode ser acessado através do site da Ancop (portalpopulardacopa), na aba "documentos" e depois "documentos Articulação Nacional".

8 - E a lista de violações é bastante longa. Os questionamentos à Copa não estão restritos ao uso de verbas públicas. São muitos abusos concretos, situações reais, que afetaram e vêm afetando diretamente a vida de centenas de milhares - para não dizer milhões - de pessoas em todo o Brasil:

. Os cálculos mais conservadores citam a cifra de quase 200 mil pessoas removidas de suas casas como decorrência da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. São remoções a toque de caixa, feitas, como é de praxe, com violência, cooptação de lideranças, falta de informação aos atingidos, ausência de compensações adequadas. Sem falar nas consequências indiretas que vieram a reboque, a se destacar os grandes empreendimentos imobiliários travestidos de projetos urbanísticos, operações urbanas - bancados por governos em todo o país - que vêm expulsando os mais pobres das áreas valorizadas.

. Desde que o Brasil e o Rio de Janeiro foram escolhidos como sede, respectivamente, da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, uma série de leis e portarias foram e vêm sendo aprovadas e editadas (ou preparadas para tal) como forma de “adequar” a institucionalidade brasileira a esses eventos. São leis que permitem concessões de terras e bens públicos para a realização dos eventos, que proíbem manifestações, que autorizam o uso da Força Nacional contra manifestações civis (!), que cassam o direito de greve (!!) durante o período dos jogos, que não permitem o trabalho de comerciantes e ambulantes ao redor dos estádios etc. No geral, todas essas leis e portarias são feitas na medida para atender aos interesses da Fifa e/ou de grandes empresas. A Lei de Geral da Copa é a principal delas, mas não a única.

. As obras de infraestrutura e dos estádios vêm sendo acompanhadas por inúmeros casos de exploração dos trabalhadores. Já ocorreram duas dezenas de greves de operários, além de mortes causadas em boa parte por conta da aceleração requerida para o término das obras. Para piorar, prepara-se a aprovação de uma Medida Provisória que permitiria a contratação de trabalhadores por curta duração sem vínculo empregatício durante a Copa e as Olimpíadas.

. Sob o pretexto e/ou como consequência dos megaeventos, estádios e aeroportos foram concedidos à iniciativa privada.

. Todas as decisões relacionadas aos megaeventos estão sendo tomadas sem a mínima participação popular, passando por cima de instâncias como o Conselho das Cidades

. As obras de infraestrutura bancadas com dinheiro público vêm sendo amplamente questionadas por beneficiarem principalmente o capital imobiliário e o transporte individual, por serem um dos agentes dos processos de higienização das cidades e por serem também causadoras de remoções feitas a toque de caixa. Denuncia-se também que verbas públicas vêm sendo destinadas a estádios públicos que posteriormente serão concedidos à iniciativa privada, num processo de elitização que afastará (ou já vem afastando) cada vez mais os pobres da possibilidade de assistirem aos jogos.

Diante de todo esse quadro de violações, está muito longe da realidade falar que os protestos que questionam os megaeventos esportivos foram orquestrados exclusivamente para derrubar a presidenta. Ou que são “contra o Brasil” e “contra o futebol, símbolo da cultura brasileira”, como bisonhamente defendeu um colunista. Muito pelo contrário. são a favor do Brasil. São a favor do futebol, mas não o futebol elitizado que uma Copa do Mundo hoje representa, que impede que o povo chegue perto das benesses do evento-ponto alto do esporte mais popular do planeta. Não se trata de ser contrário a estádios modernos, ou ao futebol-idem. Mas sim defender que tal processo de “modernização” não pode estar atrelado a um processo de elitização.

Mais do que tudo, a realização da Copa e das Olimpíadas está servindo como pretexto perfeito para um dos mais intensos processos de reconfiguração urbana dos últimos anos, acelerando de maneira frenética o avanço do capital imobiliário sobre os direitos da população pobre, que vem sendo sistematicamente expulsa das regiões valorizadas. Revitalização é a palavra do momento. Vale tudo para “limpar” a imagem de uma cidade que receberá jogos da Copa ou das Olimpíadas e atrair… negócios. Não adianta denunciar as atrocidades cometidas pela polícia do Alckmin na cracolândia de São Paulo e achar que esse tipo simplesmente abominável de ação repressiva não tem relação alguma com a maneira como vem sendo consolidada a realização dos megaeventos no Brasil.

Sim, é, claro, desses movimentos pode-se questionar o foco, a escolha da palavra de ordem, o momento dos protestos, suas possíveis consequências políticas, suas contradições. E é evidente que há os que aproveitam para focar os ataques exclusivamente no governo federal. É evidente que setores da direita aproveitam qualquer brecha para capitalizar. Assim como as manifestações de junho, esses protestos ganharam um caráter abrangente e difuso, difícil de ser analisado. Não se prestam a rotulações feitas com o fígado.

De qualquer forma, o que fazer? Ignorar as gravíssimas violações e nefastas consequências da realização dos megaeventos? Esperar de braços cruzados que continuem a ocorrer remoções, que as famílias atingidas prossigam desassistidas, que leis radicalmente antidemocráticas sigam sendo aprovadas, que trabalhadores continuem sendo explorados? Não há brecha maior para a direita do que a forma como esses eventos vêm sendo organizados pelas diversas instâncias de poder. E a direita já a está aproveitando, podem ter certeza.

Espantosa a megalomania de considerar que qualquer protesto contra a Copa seja uma armação destinada especialmente a atacar (e derrubar) o governo Dilma. Por mais que tentem fazer crer, a luta de classes no Brasil não se resume a PT x PSDB.
http://www.brasildefato.com.br/node/27274

Artigo - Prof. Katya Kozicki e Prof. Estefânia Barboza

Artigo excelente das queridas Professoras e integrantes deste Núcleo -  Katya Kozicki e Estefânia Barboza

http://www.dirittoequestionipubbliche.org/page/ultimonumero.htm

Protestos na Copa e a Portaria do Ministério da Defesa

Excelente texto do amigo Fábio Almeida, doutorando da UnB e Visiting Researcher em HARVARD, sobre a inconstitucional e antidemocrática Portaria do Ministério da Defesa, que estabelece como reprimir os eventuais protestos e movimentos sociais durante a Copa do Mundo.

Depois das contundentes críticas, a malfadada Portaria está sendo revista pelo Governo Federal.


Portaria do Ministério da Defesa viola a liberdade de manifestação
A democracia brasileira passa por um momento delicadíssimo, que pode ser percebido em elementos que, se eram socialmente presentes há algum tempo, agora estão sendo institucionalmente escancarados. Paira no ar a impressão, típica de momentos de exceção, de que a pirâmide normativa está de cabeça para baixo. Uma ordem direta de um superior hierárquico tem valor maior do que o texto de uma lei aprovada no Parlamento.Ou, pior, uma portaria emanada de um órgão qualquer pode se contrapor diretamente às garantias democráticas estabelecidas na Constituição da República.
É o que se vê em uma Portaria do Ministério da Defesa, assinada pelo Ministro Celso Amorim e publicada na “calada da noite” do ano de 2013. Eis o texto, que pode ser acessado aqui:
PORTARIA NORMATIVA Nº  3.461 /MD, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2013.
Dispõe sobre a publicação “Garantia da Lei e da Ordem”.
O MINISTRO DE ESTADO DA DEFESA, no uso das atribuições que lhe conferem o inciso II do parágrafo único do art. 87 da Constituição, e observado o disposto nos incisos III, VI e IX do art. 1º do Anexo I do Decreto nº 7.974, de 1º de abril de 2013, resolve:
Art. 1º Aprovar a publicação “Garantia da Lei e da Ordem – MD33-M-10 (1ª Edição/2013)”, na forma do anexo a esta Portaria Normativa.  
Parágrafo único. O Anexo de que trata o caput deste artigo estará disponível na Assessoria de Doutrina e Legislação do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas.
Art. 2º Esta Portaria Normativa entra em vigor na data de sua publicação.
CELSO AMORIM
(Publicado no D.O.U. nº 247 de 20 de dezembro de 2013.)
Nada demais, não é? Só mais um “inocente” texto normativo, como tantos outros publicados diariamente no Diário Oficial. Pois o anexo aprovado pela portaria é um verdadeiro show do horrores para qualquer um que se orgulha de viver em uma democracia constitucional.
Vamos ao texto: logo na página 13, encontra-se a finalidade do documento: “Esta publicação tem por finalidade estabelecer orientações para o planejamento e o emprego das Forças Armadas (FA) em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO)”. Mais adiante (p.14 e 15), o texto conceitua os principais termos, já com uma linguagem extremamente militarizada:
Operação de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) é uma operação militar conduzida pelas Forças Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem. 
Forças Oponentes (F Opn) são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio. 
Ameaça são atos ou tentativas potencialmente capazes de comprometer a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio, praticados por F Opn previamente identificadas ou pela população em geral.
Ou seja, o documento já parte da premissa da intervenção em contexto de guerra, em que cidadãos são tratados como “ameaça” e “forças oponentes”. Tudo com fundamentos  extremamente rasos: uma meia dúzia de referências vagas ao art. 142 da Constituição e a Leis e outras normas, além de uma pérola filosófica que é bastante preocupante para qualquer um minimamente preocupado com a estabilidade da democracia no país:
4.1.1. Os fundamentos para o emprego da força nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem assentam-se na observância dos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da legalidade, influenciando a opinião pública de forma favorável à operação. 
Desde quando “razoabilidade, proporcionalidade e legalidade” são fundamentos para o emprego da força? No máximo, seriam mecanismos interpretativos para realizar o controle do emprego da força, mas não um fundamento. Esses são conceitos que – e aqui há grande discussão jusfilosófica a respeito – trazem maior instabilidade e menor transparência nos atos praticados em favor da “lei e da ordem”, pois favorecem justificativas abertas e pouco motivadas para o uso de um instrumento de exceção. Sim, porque o uso das Forças Armadas em operações – que podem usar armamento, ainda que não letal –contra civis é típico de regime de exceção.
Note, ainda, que o pressuposto da ação não é o de convencimento da população de que as medidas são adequadas ou necessárias. As Forças Armadas devem atuar “influenciando a opinião pública de forma favorável à operação”. Em uma democracia constitucional, os cidadãos devem ser convencidos por meio de instrumentos procedimentais de diálogo, não “influenciados” para que concordem com uma operação militar.
A escolha de palavras não é fortuita. Os cidadãos não devem ser persuadidos das medidas – devem serinfluenciados para concordar com elas. Nós, os “civis”, nem somos tratados como cidadãos, mas mera “massa”, transfigurada no conceito de “opinião pública”. Somos rebanhos e o comandante da operação nos diz o que devemos fazer obedientemente.
O show de horrores não para aí. Nas páginas 25 e seguintes do documento, percebe-se todo o mecanismo de espionagem necessário ao “sucesso” das operações:
4.2.2.3.1 O minucioso conhecimento das características das F Opn e da área de operações, com particular atenção para a população que nela reside, proporcionará condições para a neutralização ou para a supressão da capacidade de atuação da F Opn com o mínimo de danos à população e de desgaste para a força empregada na Op GLO. 
Os termos utilizados denotam, novamente, o caráter autoritário da medida. As Forças Armadas devem colher todas as informações necessárias para a neutralização ou para a supressão da capacidade de atuação das Forças Oponentes (F Opn) com o mínimo de danos à população. Na leitura do texto, sinto-me em um episódio da série 24 Horas, no meio de um ataque terrorista que deve ser “neutralizado” ou cuja capacidade de atuação deve ser “suprimida”.
Quanto à população (ou as tais Forças Oponentes são o quê? Extra-terrestres? Zumbis?), não tem jeito: a operação não busca evitar qualquer causalidade, mas apenas pretende adotar uma política de “redução de danos”. O documento prevê a utilização de armamento não letal, mas o fato é que eles não são assim tão “não letais” assim.
O documento é tão detalhado que prevê até como as Forças Armadas devem lidar com a mídia. A comunicação social deve ser utilizada de modo a alcançar a “conquista e a manutenção do apoio da população e a preservação da imagem das forças empenhadas”, e evitar incidentes que possam ser explorados pelas “Forças Oponentes ou pela mídia”.  Aliás, há no texto até recomendação para “filmagem das atividades da tropa”, de modo a “constituir prova contra possível propaganda adversa”. Faltou apenas a recomendação de que os agentes envolvidos tirem a câmera da mão de um civil que esteja filmando um incidente. Talvez porque não precise e o comportamento já esteja embutido na psiquê das tropas.
Mais ainda, o “anexo” prevê o emprego de operações psicológicas, consideradas básicas para “a conquista e manutenção do apoio da população, de sorte a desenvolver uma atitude contrária às F Opn [Forças Oponentes] e outra favorável em relação às forças envolvidas”. Consoante já destacado, toda a ação é destinada a tratar as “forças oponentes” como inimigo. Apesar de o item 4.3.1 dizer que as “forças oponentes” não são inimigas, verifica-se que a própria definição de “força oponente”, no item seguinte, é problemática: 
4.3.2 Dentro desse espectro, pode-se encontrar, dentre outros, os seguintes agentes como F Opn: 
a) movimentos ou organizações; 
b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc; 
c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações ou em OSP, provocando ou instigando ações radicais e violentas; e 
d) indivíduos ou grupo que se utilizam de métodos violentos para a imposição da vontade própria em função da ausência das forças de segurança pública policial. 
 Por que destaquei em vermelho a alínea “a”? Porque os demais itens até podem não ser tão problemáticos, a depender do contexto, e podem de fato demandar a intervenção das Forças Armadas em uma situação de crise institucional. Mas a alínea “a” escancara a porta da arbitrariedade. Abstratamente, a norma prevê que qualquer movimento ou organização pode ser tratada, em princípio, como “Força Oponente”. 
E, afinal, é para esse caso em especial que o normativo todo se justifica. Afinal, todo o aparato destinado ao convencimento da população seria desnecessário para combater atividades essencialmente radicais, violentas e criminosas; o “convencimento psicológico” só é necessário para a alínea “a”, quando grande parte da população, legitimamente, pode apoiar um “movimento” ou “organização”. Tratar, a priori, formas de ação coletiva como “Forças Oponentes” à garantia da lei e da ordem é uma violação frontal à liberdade de expressão, de associação e de reunião.
Alguém poderia pensar que essas atitudes violentas são justificadas em situações de emergência e crise. Mas é esse o caso? Não. A maior parte dos casos considerados de “Operação de garantia da lei e da ordem” envolvem manifestações populares e o exercício de direitos como o de greve. Veja-se a redação do artigo 4.4, que descreve as “principais ameaças“:
4.4 Principais Ameaças 
Entre outras, podem-se relacionar os seguintes exemplos de situações a serem enfrentadas durante uma Op GLO: 
a) ações contra realização de pleitos eleitorais afetando a votação e a apuração de uma votação; 
b) ações de organizações criminosas contra pessoas ou patrimônio incluindo os navios de bandeira brasileira e plataformas de petróleo e gás na plataforma continental brasileiras; 
c) bloqueio de vias públicas de circulação; 
d) depredação do patrimônio público e privado; 
e) distúrbios urbanos; 
f) invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas; 
g) paralisação de atividades produtivas; 
h) paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País; 
i) sabotagem nos locais de grandes eventos; e 
j) saques de estabelecimentos comerciais. 
A meu ver, a chave para compreender esse ato normativo é a alínea “i”. É evidente que essa parafernália legal que inventaram com essa portaria tem raízes nas manifestações de junho do ano passado, na ocasião da disputa da Copa das Confederações. E mostra a má vontade das Forças Armadas com manifestações populares contra os chamados “grandes eventos”, que são chamadas de “sabotagem”, e não como manifestação salutar da vox populi, total e irrestritamente protegida pelo art. 5º, IV e XVI, da Constituição da República. A manifestação popular está irremediavelmente prejudicada pela intervenção militar com o intuito de desbloquear vias (inciso “c”) ou evitar distúrbios urbanos (“e”).
Pior ainda, o dispositivo levou a reboque outros direitos. A greve, por exemplo, é direito assegurado no art. 9º da Constituição, mas pode ser considerada uma situação de afronta à “lei e à ordem” e demandar a intervenção do Exército. Afinal, a greve exige a paralização da atividade produtiva (inciso “g”) e pode implicar a paralização de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos (inciso “h”). Em outras manifestações, pode haver invasão de propriedades públicas e particulares – que podem ser, em alguns casos, legítimo exercício do direito à liberdade de manifestação.
Evidentemente, não se está a defender o direito de ninguém depredar prédios públicos ou a propriedade de ninguém. Mas essa é uma responsabilidade que deve ser aferida caso a caso e após a ocorrência da turbação, não a priori. Pode fazer sentido que o MST invada uma fazenda privada que seja improdutiva. O movimento não pode, evidentemente, saquear a fazenda, mas a manifestação faz parte de sua pauta de reinvidicações e está ancorada em dispositivo constitucional que autoriza a desapropriação legal de terras improdutivas – que não cumprem sua função social (art. 184 do texto constitucional).
No “Anexo G”, outra barbaridade contra a vida de uma sociedade democrática. O texto descreve um dos cenários de atuação dos militares para manter a “lei e a ordem pública”, nos seguintes termos: “Atuação de elementos integrantes de movimentos sociais reivindicatórios, de oposição ou protesto, comprometendo a ordem pública”.
É nítida a orientação de calar movimentos de oposição ao governo, cuja existência é o que define exatamente um regime democrático. Oposição, protesto e movimentos de reivindicação são elementos típicos de qualquer sociedade livre. O texto pretende “abrandar” o tom ao estatuir que esses movimentos devem sofrer intervenção caso estejam “comprometendo a ordem pública”, mas, em última instância, quem define se a ordem pública está sendo comprometida ou não são as próprias autoridades.
Não duvido, por exemplo, que um movimento como o do vídeo abaixo seria qualificado como violador da ordem pública, por gerar “distúrbio urbano” e “bloquear vias públicas”:

http://www.criticaconstitucional.com/portaria-do-ministerio-da-defesa-viola-a-liberdade-de-manifestacao/