“CURA
GAY”: INCONSTITUCIONALIDADE E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
Em clara contraposição ao seu
encargo e missão, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados
aprovou o Projeto de Decreto Legislativo nº 234/2011 que propõe sustar “a
aplicação do parágrafo único do art. 3º e o art. 4º, da Resolução do Conselho
Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999, que estabelece normas de
atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual”.
Afrontando resolução da
Organização Mundial de Saúde que há muito desmistificou o caráter
preconceituosamente patológico legado à homossexualidade, contrariando os
inúmeros documentos internacionais em matéria de direitos humanos que encravam
a igualdade e vedação da discriminação, bem como aos dispositivos
constitucionais fundamentais aplicáveis à espécie, o Projeto, de autoria do
Deputado João Campos (PSDB/GO), foi aprovado na referida Comissão, tendo
recebido apenas um voto contrário do deputado Simplício Araújo (PPS-MA).
A absurda aprovação é
apenas um reflexo da composição da Comissão de Direitos Humanos sob a
presidência do Deputado Marco Feliciano (PSC/SP) que, publica e expressamente,
manifesta-se contrariamente aos direitos de diversos grupos vulneráveis,
confundindo suas razões religiosas com argumentos supostamente aptos a
justificar ações de Estado – laico, convém sempre repisar!
A admissão e concordância
legados pela Comissão da Casa Legislativa nesta votação bem demonstram que esta
não possui aptidão para compreender o tema de seu mandato, qual seja: direitos
humanos.
Os direitos são construídos historicamente, frutos de dinâmicas sociais, produzidos a partir destas "em defesa de
novas liberdades contra velhos poderes", frutos de uma "racionalidade
de resistência". É nesse influxo que os direitos humanos avultam como um
“contrapoder” que marca o processo constante de lutas contra a lei do mais forte. Essa perspectiva combina com a
tônica dos direitos humanos que visam equilibrar
as relações assimétricas de poder. São, portanto, “trunfos poderosos” – majoritários, mas, sobretudo,
contramajoritários – da luta pela construção de uma sociedade (mais)
materialmente inclusiva.
É todo
esse legado de luta pelos direitos humanos que descarta a referida Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados quando endossa projeto legislativo que
desconsidera uns sujeitos em detrimento de outros por variação natural da
sexualidade humana.
Já há
muito descartou-se o preconceituoso rótulo de doença à homossexualidade que
passou a ser compreendida como orientação sexual conformadora da identidade
pessoal dos sujeitos. Neste influxo, ainda que tardiamente, em 1999, o Conselho
Federal de Psicologia, por meio da resolução nº 001/99, proibiu a terapia de
alteração da orientação sexual. É justamente esta resolução que o projeto de
decreto legislativo pretende alterar.
A
aprovação da referida Comissão rompe com a herança da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e com a Constituição da República vigente ao entrever a
diferença como minus desabonador da plena condição de sujeito de
direitos. Esta postura não combina com o idioma dos direitos humanos!
Tal
postura afronta ainda o princípio democrático, pois em nome da representação da
sociedade brasileira, os Deputados da Comissão de Direitos Humanos impõem a uma
minoria um modo de vida particular, específico, pretensamente desejado pela
maior parte da população que eles dizem representar. Oras, se a democracia é o
melhor método para se tomar decisões imparciais de índole coletiva, então a
resposta intuitiva é que tal postura seria possível, porque é proposta pelos
representantes do povo, tem respeitado os ritos procedimentais exigidos e,
assim, seria possível obrigar uma minoria a adotar um determinado modo de vida
escolhido pela maior parte da população – o de que a homossexualidade é doença
e pode ser curada.
Entretanto,
essa postura tem uma contradição interna importante – se a democracia é,
justamente, o processo que impede que um indivíduo imponha sua vontade pessoal
sobre os demais em relação a um assunto que importe a todos, consequentemente,
é inaceitável que a comunidade imponha a alguns de seus membros decisões que
têm a ver com planos de vida individuais. Se essa postura fosse admitida,
acabaria por implodir o fundamento da própria democracia – a liberdade de cada
indivíduo em se autogovernar e ser tratado com igual respeito e consideração em
relação aos demais.
Na fala
dos direitos humanos e da democracia, o linguajar não pode ser outro que não o
da alteridade, pois, somente à luz deste enfoque permite-se que as diferenças
não se inibam e saiam à luz. Nesse sentido, sublinhamos a sempre presente lição
de Boaventura de Sousa Santos: “temos o
direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que
não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.
A
garantia da igualdade, também compreendida como inclusão e reconhecimento das
diferenças, é condição elementar para o pleno desenvolvimento dos direitos
humanos e da democracia.
Assim sendo,
se há algo que necessita de “cura” não é a orientação sexual variante natural e
própria da singularidade de cada ser humano, mas sim o preconceito e a
intolerância que a atual composição da Comissão de Direitos Humanos da Câmara
dos Deputados replica em seu ato de aprovação do referido projeto legislativo
que é inconstitucional porque violatório do direito humano mais básico que é o
de simplesmente ser – aí compreendidas todas as características que definem
a essência humana.
Manifesto redigido pelo Núcleo de
Pesquisa Constitucionalismo e Democracia da Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Nenhum comentário:
Postar um comentário