sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Novo texto de Cass Sunstein: "Constitutional Personae"


Novo texto de Cass Sunstein intitulado "Constitutional Personae, sobre os tipos de juízes e a consequência da adoção de cada postura. Um texto ainda em construção, que lembra um pouco algumas ideias do livro "A Constituttion of Many Minds".  Muito interessante.



"Debates over constitutional law familiarly explore competing theories of interpretation. Should judges follow the original understanding of the Constitution, or attempt to reinforce democratic processes, or offer moral readings? The differences among competing theories are of course fundamental. But if we investigate the arc of constitutional history, we will discover another set of differences. They involve disparate Constitutional Personae – judicial roles and self-presentations that sharply separate judges (as well as academic commentators). The leading Personae are Heroes, Soldiers, Burkeans, and Mutes. Broadly speaking, Heroes are willing to invoke the Constitution to invalidate state and federal legislation; Soldiers defer to the actions of the political branches; Burkeans favor only incremental change; and Mutes prefer not to decide difficult questions."

https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2292027

sábado, 5 de outubro de 2013

Prof. Jane Reis Gonçalves Pereira sobre os 25 anos da Constituição

Prof. Jane Reis Gonçalves Pereira (UERJ) sobre os 25 anos da Constituição

"Foi no campo dos direitos humanos que se operaram as conquistas mais relevantes. Negros, mulheres, deficientes e homossexuais têm sido contemplados por políticas inclusivas respaldadas na Constituição. São representativas desse processo de reconhecimento as diversas políticas de cotas, a Lei Maria da Penha e a união homoafetiva. É certo que há ainda um extenso caminho a percorrer, mas os primeiros passos foram dados.

A despeito desses avanços, convivemos com verdadeiras zonas de exclusão de direitos humanos. Há grupos invisíveis cujos direitos fundamentais são sistematicamente negligenciados. Índios, moradores de comunidades pobres e presos vivem sob um regime de exceção, sujeitos a variadas formas de opressão e violência pela ação e pela omissão do Estado. Em relação a tais grupos vulneráveis, é alarmante a naturalização da brutalidade sistemática e a insensibilidade coletiva quanto à gravidade da questão."


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A Odisseia da Carta de 1988: o que conquistamos e o que resta a fazer

Por Jane Reis Gonçalves Pereira
Há 25 anos era promulgada a Constituição de 1988. Um documento que jogava luz no futuro e enunciava o juramento de cessar o longo ciclo de violência estatal, de democratizar a política e de construir um país justo. Na sequência da euforia cívica vivida durante os trabalhos da Constituinte, colocava-se o desafio de transformar em realidade as demandas reprimidas por democracia, liberdade e igualdade.
De todas as promessas de 88, a que foi atendida com mais solidez foi a da estabilidade democrática.  Em um país onde a alternância de poder ocorreu repetidas vezes por meio das armas, de ajustes de gabinete ou da morte, as cinco mudanças na presidência promovidas com respeito às normas constitucionais configuram uma conquista a ser apreciada e festejada.
Não podemos esquecer que apenas duas das oito constituições que tivemos ao longo de nossa história duraram mais que a de 1988: a Carta do Império, de 1824, e a Constituição republicana de 1891. Considerando a instabilidade atávica que marcou nossa trajetória constitucional, esse aniversário deve ser interpretado como um certificado de maturidade institucional.
É verdade que as proclamações da Carta de 1988 já não inspiram o otimismo dos primeiros anos.   Seus defeitos tornaram-se mais aparentes e muitos dos seus comandos são vistos com descrença.  Formou-se uma visão caricatural e anedótica a respeito do perfil detalhista e abrangente do texto constitucional.  Afirma-se, não sem razão, que ele aborda matérias que poderiam ter sido deixadas para a deliberação parlamentar comum. É possível que essa característica seja consequência da falta de confiança no legislador ordinário. Enclausurar certas matérias em normas constitucionais as colocaria a salvo do casuísmo, do personalismo e do oportunismo que estigmatizam a política cotidiana.
Foi no campo dos direitos humanos que se operaram as conquistas mais relevantes. Negros, mulheres, deficientes e homossexuais têm sido contemplados por políticas inclusivas respaldadas na Constituição. São representativas desse processo de reconhecimento as diversas políticas de cotas, a Lei Maria da Penha e a união homoafetiva. É certo que há ainda um extenso caminho a percorrer, mas os primeiros passos foram dados.
A despeito desses avanços, convivemos com verdadeiras zonas de exclusãode direitos humanos. Há grupos invisíveis cujos direitos fundamentais são sistematicamente negligenciados. Índios, moradores de comunidades pobres e presos vivem sob um regime de exceção, sujeitos a variadas formas de opressão e violência pela ação e pela omissão do Estado.  Em relação a tais grupos vulneráveis, é alarmante a naturalização da brutalidade sistemática e a insensibilidade coletiva quanto à gravidade da questão.
A mais importante missão constitucional não realizada é eliminar o fosso que separa os que têm acesso ao Direito e aos direitos e os que não têm.  A sociedade brasileira continua  a conviver com uma distribuição estamental  e censitária dos benefícios de viver em um Estado de Direito. O desafio, doloroso e urgente, é reconhecer e assumir a responsabilidade pelo fato de uma parte do país estar vivendo sob um Estado de não Direito.
Há uma clara relação entre nossa iniquidade ancestral e as demandas que estouraram nas ruas no 25º aniversário da Constituição. A revolta em torno do alto custo e baixa eficiência do transporte público foi o pavio que incendiou uma sequência inédita de manifestações contra a violência policial, por acesso à saúde e à educação,  por inclusão urbana e pela lisura na gestão pública.
Não se trata de uma explosão de cidadania apta a justificar a proposta de convocação uma semiconstituinte para votar a reforma política, cogitada em meio aos protestos como solução de emergência. Bem ao contrário, foi uma demonstração de que as demandas populares constitucionalizadas em 1988 são ainda, em larga escala, as mesmas. Está em jogo a estrutura arcaica que nos sobra e a república que nos falta.
É inegável que o sistema político e eleitoral é o calcanhar de Aquiles da Carta de 1988.  Ninguém mais questiona a necessidade de uma reforma política abrangente. Entretanto, as práticas antirrepublicanas enraizadas e os interesses de grupos já estabelecidos no controle do Estado bloqueiam o avanço da discussão.   A alternativa já aventada, que seria a realização de uma constituinte exclusiva, não compensa os riscos de retrocesso que encerra.  Abstraindo a discussão dogmática sobre a validade e a legitimidade desse tipo de proposta, a história do constitucionalismo nos ensina que a energia constituinte não pode ser pautada ou encapsulada.   Uma vez fissurado o pacto de 88, embarcaríamos em uma viagem de transição constitucional portando apenas o bilhete de ida. Colocaríamos em risco o sucesso mais consistente da Carta de 88, que é a estabilidade advinda da lealdade ao compromisso nela contido. Fazer a reforma necessária de acordo com as regras vigentes é possível e depende, substancialmente, da boa-fé e autenticidade de propósitos dos atores políticos, algo que a convocação de uma assembleia exclusiva não poderia, por si só, garantir. Muito ao contrário, haveria o risco inverso de a assembleia ser capturada e instrumentalizada pelos mesmos agentes conservadores que colonizam as instâncias de representação.
Ao nos distanciarmos cronologicamente dos cenários de ruptura, corremos o risco de cair na armadilha de tomar as liberdades por garantidas e supor que as conquistas já alcançadas são irreversíveis. Não são.  E é exatamente pelo caráter não linear da história que constituições dotadas de supremacia são hoje o modelo jurídico hegemônico nas democracias ocidentais.  Elas estabelecem a fórmula pela qual se tenta amansar as convulsões da política, ditando as regras do jogo e removendo do alcance das maiorias um acervo de direitos e valores fundamentais. Elas são o ponto de apoio e equilíbrio que permite a convivência pacífica entre grupos adversários.   A estabilidade que o pacto de 88 vem nos proporcionando tem um valor intrínseco que não pode ser menosprezado.
Falta-nos, também, a ampliação e efetivação dos mecanismos de democracia participativa que a Constituição de 1988 previu. Plebiscito, referendo e iniciativa popular são ferramentas democráticas subutilizadas e que poderiam  ajudar a desobstruir os canais de decisão bloqueados pelas estruturas conservadoras da representação tradicional.
Acredito que é possível promover as mudanças necessárias sem romper com o acordo constitucional originário.  Porque se há algo que aquela catarse cívica de 1987 a  1988 nos legou é a capacidade de acreditar que o Direito pode ser um instrumento de transformação. Mas há também algo que os insucessos constitucionais e as contínuas falhas do nosso sistema político e social nos ensinam cotidianamente: o Direito não basta.  A aquisição de uma cultura constitucional não é coisa que seja publicada no Diário Oficial ou possa ser registrada em cartório. O grau de valor que se atribui à Constituição é uma decisão política que se constrói aos poucos e que define a trajetória do país.
A Carta de 1988 não é perfeita e não precisa ser. Não é o caso de saudá-la como um documento sobrenatural e infalível. Um compromisso coletivo com a sua normatividade é o que necessitamos para realizar as promessas civilizatórias não cumpridas.  Porque no fim das contas, uma Constituição é um conjunto de palavras que só se tornam verdade se acreditarmos nelas.

http://estadodedireitos.com/2013/10/04/a-odisseia-da-carta-de-1988-o-que-conquistamos-e-o-que-resta-a-fazer/

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Prof. Luís Roberto Barroso sobre os 25 anos da Constituição de 1988

Entrevista do Prof. e Ministro do STF Luís Roberto Barroso sobre os 25 anos da Constituição de 1988

“Uma questão só chega ao Judiciário se tiver se transformado num conflito. E ninguém deve achar que conflitos possam ser a maneira normal de se resolver problemas em uma democracia. O Judiciário supre demandas emergenciais, mas o que o país está precisando é de política de qualidade”




Entrevistas

POLÍTICA RUIM

'Demandas do país não se resolvem no Judiciário'


Luís Roberto Barroso - 05/06/13 [Antonio Cruz | ABr]"Espero que o Congresso Nacional, num curto prazo, livre o Supremo Tribunal Federal do foro por prerrogativa de função, salvo autoridades como o presidente e o vice-presidente da República, os presidentes dos Poderes, os ministros do Supremo e o procurador-geral da República." A frase é do ministro Luis Roberto Barroso, o mais novo no Supremo Tribunal Federal, que logo ao chegar na corte já teve de julgar um dos processos mais volumosos da história da corte, a Ação Penal 470, com 37 réus. O ministro propõe a criação de uma vara em Brasília apenas para os que hoje têm foro no STF por conta da função, cabendo então ao Supremo apenas analisar os recursos, as questões jurídicas, e não o recebimento da denúncia.
Em entrevista ao jornal Valor Econômico, o ministro fez um balanço dos 25 anos da Constituição Federal que, segundo ele, trouxe estabilidade institucional, garantiu os direitos sociais e criou uma cultura de direitos fundamentais. Porém, Barroso diz que as instituições não foram capazes de prestar serviços de qualidade à população.
Ao falar sobre o Judiciário, Barroso afirma que há um equívoco em imaginar que as grandes demandas políticas do país possam ser atendidas pelo Judiciário. “Uma questão só chega ao Judiciário se tiver se transformado num conflito. E ninguém deve achar que conflitos possam ser a maneira normal de se resolver problemas em uma democracia. O Judiciário supre demandas emergenciais, mas o que o país está precisando é de política de qualidade”, diz.
A política de qualidade é, para Barroso, a solução para diversos problemas enfrentados no país, como para garantir os direitos previstos na Constituição, inclusive os que ainda não foram regulamentados, e também a guerra fiscal entre os estados. “Não se cura desespero com decreto. Nem decreto normativo, nem judicial. Os estados vivem um momento de aflição financeira muito grave. Temos que pensar quais soluções são dadas em outras partes do mundo e o que é aproveitável para o Brasil. Mas essa não é uma solução judicial. É uma solução política. O Brasil precisa de mais política, mas política de qualidade”.
Mesmo afirmando que não é necessária uma nova Constituição para o país, apenas “uma lipoaspiração aqui, uma plástica ali ou uma prótese acolá”, Barroso diz que o sistema eleitoral é um desastre que não pode ser resolvido pelo Judiciário.
Leia a entrevista concedida ao jornal Valor Econômico:
O Judiciário deve agir sempre que as exigências da Constituição de 1988 não estiverem sendo cumpridas por outros Poderes? O Judiciário viveu sob a Constituição de 1988 uma vertiginosa ascensão institucional. Ele tem servido bem ao país, embora padeça da mesma incapacidade de outras instituições de atender a todas as demandas da sociedade. Porém, é um equívoco imaginar que as grandes demandas políticas do país possam ser atendidas pelo Judiciário. O Judiciário é, e é curioso eu dizer isso, uma instância patológica. Uma questão só chega ao Judiciário se tiver se transformado num conflito. E ninguém deve achar que conflitos possam ser a maneira normal de se resolver problemas em uma democracia. O Judiciário supre demandas emergenciais, mas o que o país está precisando é de política de qualidade.
Por que as instituições não conseguem atender às demandas da população 25 anos depois de a Constituição garanti-las no papel? Sob a Constituição de 1988, o Brasil avançou muito em diversas áreas. A cidadania atingiu um novo patamar de consciência e exigência. Mas, embora tenhamos melhorado muito, as instituições não estão conseguindo atender às demandas por Justiça e por serviços na intensidade e na qualidade desejáveis. Somos um país que começou atrasado na história, um país em construção. O Brasil começa verdadeiramente em 1808, com a vinda da família real. Somos herdeiros de uma tradição autoritária, a tradição ibérica, de um país que foi o último a abolir o absolutismo e a separar a igreja do Estado. Portanto, somos colônia de um Império que havia ele próprio se atrasado na história, e apesar disso, em 200 anos, somos uma das dez principais economias do mundo.
O STF não avançou no papel de outros Poderes ao tomar decisões antes do Congresso e do governo para garantir direitos? O Judiciário é um grande guardião dos direitos fundamentais das minorias. E o STF desempenhou com muita felicidade esse papel nos últimos anos em relação a negros, homossexuais, mulheres, atuou no caso da anencefalia. Acho que prestou outros serviços que contribuíram para um avanço social em questões como a proibição do nepotismo, as pesquisas com células-tronco embrionárias. Com a Ação Penal 470, ajudou a enfrentar o tema da impunidade.
Qual a importância da ação penal do mensalão? A AP 470 foi um marco na condenação de políticos e de poderosos em geral, como nunca se tinha visto.
Mas esse resultado não pode se dissolver, já que o julgamento foi estendido por embargos? A cabala judaica tem uma passagem em que eles dizem "tudo passa". Portanto, passam as coisas boas e as ruins. A vida é cíclica. É assim a história dos povos e das instituições. É preciso lidar com serenidade tanto com a popularidade quanto com a impopularidade. Um juiz deve ouvir as ruas, entender o sentimento social, mas fazer o que é certo e justo. Já estive do lado da maioria. É uma delícia! E com a imprensa a favor, melhor ainda. No caso da união homoafetiva, eu tive imprensa a favor, assim como no das células-tronco embrionárias, no caso do nepotismo, da anencefalia. Na extradição de Cesare Battisti, tive imprensa contra. A gente não pode achar que o povo e a imprensa são bons quando estão a favor e ruins quando estão contra. Povo e imprensa são bons quando estão contra ou a favor. A gente deve cumprir o próprio destino e fazer o que considera certo.
Com a revisão do mensalão, o marco contra a impunidade não poderia se desfazer?Não creio. Não sou bom de prognóstico. Em 1978, escrevi um artigo chamado "Socialismo e Liberdade" no jornal universitário que dizia: "O mundo caminha inexoravelmente para o socialismo". De lá para cá, caiu o muro de Berlim, desfez-se a União Soviética, abriram-se as economias da Europa Oriental e até a China pratica capitalismo selvagem. De modo que, diante do fiasco da minha incursão no mundo da vidência, agora me dedico à atividade mais segura de comentarista de videotape. Quando acontece, explico e geralmente não erro o resultado.
Quanto tempo deve demorar o julgamento?Deve ser tão rápido quanto possível para o devido processo legal. O país precisa se livrar desse assunto. O STF precisa se ocupar de outras coisas. Espero que o Congresso, num curto prazo, livre o Supremo do foro por prerrogativa de função, salvo meia dúzia de autoridades.
Quem deveria ficar?Eu teria que pensar com calma, mas pelo menos o presidente e o vice-presidente da República, os presidentes dos Poderes, os ministros do STF e o procurador-geral da República.
Os parlamentares seriam julgados na 1ª instância?A proposta que eu estava elaborando quando vim pra cá era a seguinte: criar, em Brasília, uma vara especializada que teria competência para as ações penais contra as autoridades que, hoje, têm foro por prerrogativa de função e para os crimes de improbidade. O juiz titular dessa vara deveria estar em condições de ser promovido ao Tribunal Regional Federal (TRF).
Seria um juiz apenas para deputados, senadores e ministros de Estado?Seria um juiz titular para haver homogeneidade e possivelmente diversos juízes auxiliares. Esse juiz ficaria lá por um prazo determinado, como três anos. Ao fim, seria automaticamente promovido ao TRF. Com isso, teria autonomia. Mas só poderia ser promovido ao TRF, de modo a não fazer favor para vir para o STF. O titular dessa vara seria escolhido pelo Supremo e da decisão dele caberia recurso ordinário para o tribunal.
Mas assim todo mundo ia recorrer ao Supremo...Mas o STF não seria responsável pela produção das provas, pelo recebimento da denúncia. Ele faria só o reexame de questões jurídicas.
Esse modelo existe em alguma parte do mundo?O mundo, no geral, não pratica o foro por prerrogativa de função, mas eu acho que, no caso brasileiro, é bom porque a atividade pública e a exposição pública no Brasil deixam o agente público sujeito à perversidade, a interesses políticos contrariados, a ações penais levianas. Então, se você não concentra num juízo único, em Brasília, você passa a ter essas autoridades sujeitas a ações em qualquer parte do Brasil. Elas ficam desprotegidas.
Por que o senhor acha que as autoridades ficam expostas?Há um problema de estágio civilizatório e outro de certa criminalização da política. O sistema eleitoral e o partidário no Brasil são indutores da criminalidade. Eu acho até que o povo saiu da rua rápido demais, antes que viesse um mínimo de reforma. Se o sistema eleitoral e o sistema partidário não mudarem, a criminalização da política vai continuar na ordem do dia.
Os constituintes de 1988 erraram na definição do sistema político?O sistema político é um desastre, mas a Justiça Eleitoral no Brasil é modelo para o mundo. Esse sistema eleitoral em que o voto é proporcional e a lista é aberta tem um custo tão elevado que o financiamento eleitoral acaba se fincando como raiz de boa parte dos problemas nacionais, inclusive da corrupção.
O STF não poderia mudar isso julgando uma ação da OAB contra o financiamento privado de campanhas?Há um processo que procura impedir pessoas jurídicas de fazerem doações de campanha. Ainda que alguém considere essa medida positiva, e não vou opinar, pois vou julgá-la, ela é insuficiente. O problema não é só como se financia; o problema é quanto custa. Custando o que custa, as pessoas vão procurar financiamento em outros lugares.
O Supremo poderia contribuir para a reforma política?Acho que não. Infelizmente, essa não é uma questão que possa ser resolvida pelo Judiciário, pois essa não é uma questão técnica, de decisão política. A reforma política enfrenta um impasse: o Congresso Nacional, que é o lugar por excelência para conduzi-la, é composto de parlamentares, por atores que não são neutros em relação às soluções que venham a ser dadas. Todas as pessoas que estão lá serão diretamente afetadas por qualquer mudança. Na prática, não se consegue produzir consenso. Por isso é preciso encontrar uma alternativa. O plebiscito pode ser uma opção.
O principal problema é o custo das eleições?Baratear o sistema eleitoral deve ser prioridade de qualquer reforma política. Além dela, devemos ter mais dois objetivos: acabar com a pulverização partidária e facilitar a governabilidade. Para baratear as eleições, há algumas ideias, como voto distrital, voto distrital misto, lista pré-ordenada, também chamada de lista fechada.
Como acabar com a pulverização de partidos?Há várias ideias: cláusula de barreira, proibição de coligação em eleições proporcionais. Em relação às cláusulas de barreira, acho que o STF carrega uma culpa. O que aconteceu foi que alguns partidos, sobretudo os tradicionais de esquerda, iam ser tolhidos pela cláusula de barreira. Acho que houve certa percepção de que seria uma injustiça histórica jogar no lixo esses partidos. Mas teria sido melhor abrir uma exceção para eles que abrir a porta geral.
A Constituição trouxe algo de bom no plano político?Vinte e cinco anos de estabilidade institucional. Pode parecer banal para as novas gerações, mas o Brasil sempre foi o país do golpe, do contragolpe e da quartelada, desde o início da República. Tivemos revolução de 1930, de 1932, em São Paulo, intentona comunista de 1935, golpe do Estado Novo de 1937, deposição do Getúlio Vargas em 1945, o suicídio, em 1954, que abortou o golpe que estava em curso. Depois, em 1956 e 1957, duas rebeliões contra o Juscelino Kubitscheck, a renúncia do Jânio Quadros, em 1961, o veto dos ministros militares à posse do João Goulart, o golpe de 1964, o ato institucional 5, em 1968, o golpe dentro do golpe em 1969, quando assumiu a junta militar. Foi mais de uma dezena de golpes a partir de 1930. Então, nós conseguimos em 25 anos superar todos os ciclos do atraso, no tocante ao respeito à legalidade constitucional. E isso em períodos que tiveram momentos dramáticos, como a destituição de um presidente da República, em 1992, escândalos como o dos anões do orçamento, inflação altíssima, uma ação penal como a 470.
A Constituição trouxe estabilidade, mas foi modificada mais de 70 vezes por emendas.A Constituição de 1988, por força de seu complexo processo de elaboração, resultou excessivamente abrangente e detalhista. Ela trata de matérias que na maior parte do mundo são relegadas à política ou à legislação ordinária, e com grande grau de detalhamento. Então, qualquer governo para implementar o seu programa, precisa promover um conjunto de emendas constitucionais, previdenciárias, tributárias, econômicas. A política ordinária no Brasil acaba sendo feita por emendas à Constituição. Mas ela trouxe outras coisas boas.
Por exemplo…O país avançou muito em termos de proteção ao consumidor e consciência ambiental. Quando eu era jovem, as elites pensavam num país só para si e para seus filhos. Hoje, já há a percepção de que um país é para todos, ou não há salvação. É verdade que a classe dominante só descobriu isso quando a violência ameaçava devorá-la e precisava viver em condomínios fechados e shoppings centers protegidos por guardas armados. Foi com atraso. Mas o Brasil passou a ter políticas públicas para os pobres. Não é o suficiente. Nunca tivemos política consistente e ampla para financiamento de habitação popular. O país é favelizado de Norte a Sul porque as pessoas precisam de lugar para morar e nunca houve um compromisso verdadeiramente extenso com a habitação no país. Mais importante: houve a criação de uma cultura de direitos fundamentais.
Mas muitos direitos garantidos na Constituição, como saúde e educação, ainda não são uma realidade para boa parte da população.As ideias levam um tempo desde que vencem o plano ideológico ou filosófico até quando se concretizam na vida real. Em matéria de educação, caminhamos na direção da universalização do ensino médio. A qualidade ainda é muito ruim, mas demos o primeiro passo. Acho que a universidade é mais devedora que credora da sociedade brasileira. É cara e presta um serviço deficiente ao país. Na saúde, o Brasil tem o mais ambicioso programa de inclusão social do mundo, o SUS. E ele enfrenta todas as dificuldades, do tamanho da sua ambição, que é oferecer saúde gratuita e universal para toda a população. O sistema de saúde tem muitas deficiências, mas ele não é uma ficção. Quando eu era jovem ele era uma ficção. Tivemos muitas vitórias. Não andamos na velocidade desejada, mas andamos na direção certa. E o rumo certo na vida é mais importante do que a velocidade.
O Judiciário não deveria intervir mais vezes para cobrar a eficiência desses serviços?Em muitas áreas, como a saúde, os problemas são levados ao Judiciário quando deveriam ter sido discutidos antes, na elaboração do orçamento. Nos países democráticos é na elaboração do orçamento que se discute quanto vai para educação, saúde, transporte e publicidade institucional. No Brasil, esse debate não existe. O orçamento é tratado como uma questão burocrática, uma caixa preta. Depois, se pede ao Judiciário uma realocação de verbas.
E o STF deveria atuar para efetivar os direitos da Constituição que, 25 anos depois, ainda não foram regulamentados?Isso correu com a greve do serviço público. Mas houve outra questão interessante. Há três anos, o STF decidiu que iria regulamentar os casos de indenização do empregado demitido sem justa causa. E o que aconteceu? As classes empresariais que sempre trabalharam pela não regulamentação correram para o Congresso e rapidamente obtiveram a regulamentação, porque sabiam que do STF viria algo mais protetivo ao empregado do que poderiam obter no Congresso. Isso me fez dizer que o STF se encontra à esquerda do Congresso, à esquerda do processo politico majoritário, ao menos na percepção das classes empresariais.
O STF deveria baixar uma súmula para que os Estados parem com a guerra fiscal?Não se cura desespero com decreto. Nem decreto normativo nem judicial. Os Estados vivem um momento de aflição financeira muito grave. Temos que pensar quais soluções são dadas em outras partes do mundo e o que é aproveitável para o Brasil. Mas essa não é uma solução judicial. É uma solução política. O Brasil precisa de mais política, mas política de qualidade.
O Brasil precisa de uma nova Constituição?Em nenhuma hipótese. A Constituição de 1988 tem uma valia substantiva e outra simbólica. Ela é o símbolo da superação de um Estado autoritário, intolerante e violento por um democrático de direito. Portanto, com uma lipoaspiração aqui, uma plástica ali ou uma prótese acolá, eu gostaria de comemorar daqui a 25 anos os 50 anos da Constituição.

http://www.conjur.com.br/2013-out-04/demandas-pais-resolvem-politica-nao-justica-barroso

Prof. Clèmerson Clève sobre os 25 anos da Constituição de 1988

Artigo do Prof. Clèmerson hoje na Gazeta sobre os 25 anos da Constituição

"O grande desafio do documento constitucional vigente é tornar integralmente efetiva a sua normatividade, particularmente no campo das promessas não realizadas: fim da pobreza, inclusão social, satisfação dos direitos fundamentais sociais, etc. Ao mesmo tempo, a sociedade amadurece, exercita as liberdades democráticas, reclama a realização dos direitos proclamados. Vivemos um novo momento. Não se trata de discutir princípios, sobre os quais todos estão de acordo, mas de sua satisfação."

"nossa máquina administrativa é ruim, ineficiente, custosa e, muitas vezes, alheia aos verdadeiros problemas da sociedade. Precisamos de algo simples e difícil ao mesmo tempo: melhor gestão da coisa pública."




25 anos da Constituição Federal: há o que comemorar?

Clèmerson Merlin Clève, professor de Direito Constitucional da UFPR e da UniBrasil, é líder do Núcleo de Investigações Constitucionais e Teorias da Justiça da UFPR e vice-presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas
04/10/2013 | 00:08Fale conosco

A história constitucional brasileira, como sabemos, não é linear. Ao contrário dos EUA, que conhecem uma única Constituição, vigente há mais 200 anos, nossa experiência constitucional é conturbada. Embora uma única tenha disciplinado a vida política do Império, temos, na República, passado por várias Constituições. De nossa história conturbada, porém, podemos tirar uma lição: quando a Lei Fundamental é elaborada com a participação popular, no contexto de uma sociedade aberta e inclusiva, com pleno exercício dos direitos de cidadania, ela se fortalece, favorecendo o consenso em torno dos princípios básicos que serão, depois, desenvolvidos pela vida política e efetivados pela vida social, com a garantia da proteção jurisdicional.
A Constituição de l988 inaugurou um novo momento na história do país. Entre todas, esta é, sem dúvida, a mais democrática já produzida entre nós. Aliás, não é demais reconhecer que hoje, após a sua promulgação, o país é outro. Vivencia-se um processo de mudança estrutural da sociedade – uma mudança presidida pelos valores plasmados na Constituição de 1988.
O grande desafio do documento constitucional vigente é tornar integralmente efetiva a sua normatividade, particularmente no campo das promessas não realizadas: fim da pobreza, inclusão social, satisfação dos direitos fundamentais sociais, etc. Ao mesmo tempo, a sociedade amadurece, exercita as liberdades democráticas, reclama a realização dos direitos proclamados. Vivemos um novo momento. Não se trata de discutir princípios, sobre os quais todos estão de acordo, mas de sua satisfação.
É claro que a nossa Constituição, documento humano e, mais do que isso, compromissório por excelência, apresenta vários problemas, particularmente na parte estatutária. Se a principiologia e o título consagrado aos direitos fundamentais fazem dela um dos mais avançados documentos constitucionais, a parte orgânica, dispondo sobre a organização do Estado, deve, com o tempo, ser melhorada.
Além disso, nossa Constituição é longa – mais longa que o desejável – e, por isso, é também detalhista. O momento político que presidiu a sua emergência explica o fenômeno. E porque é analítica e detalhista ao extremo, cuidando de assuntos, particularmente na parte orgânica, que deveriam ser confiados ao legislador, temos uma profusão de emendas constitucionais. Estamos, hoje, legislando por meio de emendas. Essa é uma peculiaridade do constitucionalismo brasileiro que não será corrigida tão cedo. Verdadeira jabuticaba.
Cuida-se, neste momento, aproveitando as tecnologias existentes, o novo mundo conectado em rede, de aprimorar as pontes entre as sociedades civil e política, implicando mais intensa reflexividade e auscultação, pelos poderes constituídos – em especial o Legislativo e o Executivo – das expectativas da cidadania ativa. Isso pode ser feito, inclusive, sem necessidade de reforma constitucional. Por outro lado, importa aprimorar nosso modelo de representação política para permitir maior autenticidade da representação. Isso envolve reestudar os sistemas eleitoral e partidário e, mesmo eventualmente, a forma de composição das duas Casas do Congresso Nacional. Algumas medidas também podem ser discutidas para corrigir os defeitos do nosso presidencialismo congressual ou de coalização. O atual modelo, a despeito de propiciar governabilidade, tem implicado alto custo político, dificuldade manifestação do direito de oposição e baixíssimo grau de eficiência na gestão das políticas públicas. A reforma política, neste ponto, pode exigir reforma constitucional.
Faz sentido lembrar que muito do que a recente onda de protestos cobrou pode ser realizado por meio de uma gestão pública eficiente. E aqui, também, temos um problema. A Constituição nada tem a ver com isso. Mas nossa máquina administrativa é ruim, ineficiente, custosa e, muitas vezes, alheia aos verdadeiros problemas da sociedade. Precisamos de algo simples e difícil ao mesmo tempo: melhor gestão da coisa pública. Há conhecimento à disposição para isso. Estão aí os exemplos de outros países que fazem sempre mais com menos. Por que não aprender com eles?
Mas, apesar dos seus defeitos, devemos festejar os 25 anos da Constituição de 1988 e, também, os seus acertos. E eles não são poucos. Tais acertos da Constituição cidadã têm autorizado a emergência de uma nova sociedade no Brasil. Mais dinâmica, mais participativa, mais exigente, mais madura, mais democrática, mais igualitária. É chegado o momento de o Estado compreender o que quer a sociedade. Ora, com lutas e desafios, com conquistas e frustrações, o país avança, muda. E isso, evidentemente, desafia comemoração. E a continuidade das cobranças, manifestação mais eloquente da vontade constitucional de nosso povo.


http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justica-direito/artigos/conteudo.phtml?tl=1&id=1413602&tit=25-anos-da-Constituicao-Federal-ha-o-que-comemorar

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Resiliência Constitucional - Pesquisa da DIREITO-GV

RESILIÊNCIA CONSTITUCIONAL: COMPROMISSO MAXIMIZADOR, CONSENSUALISMO POLÍTICO E DESENVOLVIMENTO GRADUAL

Esse é o título da última pesquisa publicada pela DIREITO-GV com os Professores Oscar Vilhena Vieira, Dimitri Dimoulis, Soraya Lunardi, Luciana de Oliveira Ramos, Paulo André Nassar, Rubens Eduardo Glezer.

"Essa resiliência textual contribuiu para garantir a estabilidade do pacto político conciliador e a paulatina realização das promessas constitucionais de longo prazo”

"A sua incompletude, por sua vez, convoca os atores políticos para uma interminável disputa sobre o sentido da Constituição, reforçando a sua centralidade não como norma acabada, mas como eixo ou agenda sob a qual a política se realiza”


Link para o trabalho: http://s.conjur.com.br/dl/estudo-resiliencia-constitucional-fgv.pdf

Link para a nota do CONJUR sobre o trabalho: http://www.conjur.com.br/2013-out-02/constituicao-permite-atualizacoes-perder-identidade-estudo-fgv



quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Conrado Hubner Mendes sobre os Embargos Infringentes

Excelente artigo do Prof. Conrado Hubner Mendes sobre os Embargos Infringentes e os argumentos a favor e contra ele. 

"No âmbito do STF, os embargos se sustentam com base na ambiciosa premissa de que os juízes teriam abertura de espírito para alterar suas opiniões anteriores à luz de novo confronto argumentativo. Os embargos culminariam, supõe-se, numa melhor prestação da justiça. Se essa premissa, contudo, não for plausível dentro da cultura decisória do STF (sabidamente individualista), embargos infringentes são pura perda de tempo e energia."

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,qual-voz-das-ruas-,1081038,0.htm



Qual voz das ruas?

02 de outubro de 2013 | 2h 25
Conrado Hübner Mendes* - O Estado de S.Paulo
Traído pelos embargos infringentes, o sistema processual brasileiro saiu do armário outra vez. Após extensas discussões sobre a Ação Penal 470, observadores procuram compreender o sentido de um dos recursos mais esotéricos de nosso Judiciário. É improvável que outro recurso tenha atingido, rápido assim, tamanha popularidade no jargão político nacional (o que não se deve à sua excentricidade, e sim à transcendência política do caso).
Segundo os pensadores do processo, os embargos infringentes buscam submeter uma decisão colegiada não unânime a uma rodada deliberativa extra dentro do mesmo tribunal. Descontadas as especificidades que qualificam os requisitos desse recurso nos tribunais de segunda instância e nos tribunais superiores (como STF e STJ), levar o desacordo a sério é, como se diz, a "inteligência" do instituto.
À primeira vista, não há nada errado com ele. Sua presença no processo do STF, porém, causa surpresa: ao contrário do que se passa nos demais tribunais, o mesmo grupo de juízes do STF que toma a decisão original terá de analisar o recurso. No âmbito do STF, os embargos se sustentam com base na ambiciosa premissa de que os juízes teriam abertura de espírito para alterar suas opiniões anteriores à luz de novo confronto argumentativo. Os embargos culminariam, supõe-se, numa melhor prestação da justiça. Se essa premissa, contudo, não for plausível dentro da cultura decisória do STF (sabidamente individualista), embargos infringentes são pura perda de tempo e energia.
Há outro complicador. Se, no intervalo entre a decisão original e os embargos, novos juízes forem nomeados para o tribunal em substituição aos que se aposentam (como ocorreu na atual composição do STF, com a entrada de Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso), esses juízes podem, em alguma medida, virar o placar. Nesse caso, aos olhos do público, mais que um catalisador de argumentos depurados para a melhor prestação da justiça, os embargos infringentes não passariam de artifício para alterar a decisão graças às novas cabeças que entraram no jogo. Um fato arbitrário (novas cabeças), não novas razões, determinaria o resultado final.
Há quem diga, por fim, que os embargos infringentes concretizariam a garantia ao duplo grau de jurisdição para os réus que detenham foro privilegiado. Afinal, no caso desses réus, o STF serviria como primeira e última instância no processo. Essa é, entretanto, uma justificativa mal fabricada. Como só têm direito aos embargos os réus que, apesar de terem sido condenados por maioria, receberam pelo menos quatro votos pela absolvição, os réus que não obtiverem tais votos estariam privados do direito de recorrer, uma discriminação injustificável. Além disso, o duplo grau de jurisdição é um direito que exige um julgamento por juízes diversos dos primeiros, o que não ocorre no caso do STF. Se for para garantir o duplo grau aos detentores de foro privilegiado, alguma outra fórmula precisa ser inventada. Associar os embargos ao duplo grau seria baratear esta garantia constitucional e superestimar o papel daquele recurso.
A adoção de embargos infringentes no STF, por isso, não parece ser produto de extraordinária inteligência institucional. As recentes discussões escancaram que, entre embargos, agravos e apelações, há muita coisa fora de ordem no nosso mastodôntico sistema processual.
Qualquer sistema processual, entre outras coisas, deve efetivar um componente elementar do constitucionalismo: o direito de defesa. Não existe Estado de Direito na ausência da fricção argumentativa estimulada pela oportunidade de defender-se. É desse direito que extraímos o direito de recorrer. O recurso teria ao menos três funções: a técnico-jurídica, ao tentar corrigir erros de instâncias inferiores; a política, ao dar lastro institucional mais robusto a uma decisão de autoridade; e a psicológica, ao conceder ao indivíduo afetado uma segunda chance.
Mas o cipoal de recursos do processo brasileiro é consequência de uma perversão dessas funções, do abuso do direito de defesa. Acredita-se que a maximização dos recursos equivale à minimização da falibilidade judicial. Com base nessa crença de fundo nosso sistema processual permanece refém da chicana advocatícia bem remunerada, em prejuízo de outros valores que o processo deve realizar, como a igualdade e a celeridade. O processo judicial, o penal em especial, é um dos nossos mais eficientes motores de discriminação.
Essas patologias são relevantes para pensar numa reforma corajosa e radical do processo. Ainda assim, nada têm que ver com a decisão do STF de acolher os embargos. Gostemos ou não do recurso, a maioria dos ministros entendeu que ele permanece vigente com base no regimento interno do STF e não teria sofrido, como outros alegaram, revogação implícita pela Lei 8.038, de 1990. Se a revogação fosse tão óbvia na vontade do legislador, como lembrou o ministro Celso de Mello, faria pouco sentido que os parlamentares de PSDB, DEM, PPS e PT tivessem, em 1998, rejeitado projeto de lei enviado ao Congresso pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso e que extinguia os embargos infringentes. Por mais irracional que seja, o sistema vigente precisa ser obedecido até que uma reforma o corrija.
Há vários atalhos fáceis para desqualificar a decisão do STF. Um deles é reduzir a decisão a um sintoma de iberismo, formalismo ou seja lá o que for. Melhor ainda se puder lustrar o rótulo com a citação oca de filósofo famoso. Esse caminho mais atrapalha do que ajuda, pois se recusa a participar da trabalhosa tarefa de interpretar e reformar o direito. Outro é proclamar-se intérprete oficial das manifestações e apelar para "a voz" das ruas: se não há resposta clara nas leis, curve-se à que mais agrada às maiorias de conjuntura. Um tribunal não pode ser surdo às múltiplas "vozes" das ruas, mas há maneiras e maneiras de ouvi-las. Ainda bem que o STF, a despeito do esforço de alguns ministros, não se rendeu à pior delas.
*Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo e em Ciência Política pela USP e professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP.