domingo, 25 de maio de 2014

Entrevista com Prof. Daniel Sarmento (UERJ)

Excelente e imperdível entrevista com o Prof. de Dto. Constitucional da UERJ Daniel Sarmento sobre neoconstitucionalismo, constitucionalismo democrático, interpretação constitucional fora dos tribunais, controle de constitucionalidade, ativismo judicial, processo de deliberação do Supremo Tribunal Federal, reclamação como meio de revisão das decisões do STF, última palavra na jurisdição constitucional, julgamento da ADI 4.650, doações eleitorais, messianismo judicial, direitos fundamentais, democracia, processo eleitoral, papel representativo do Supremo, diálogos com Cortes Constitucionais, influência da TV Justiça, projetos da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ, onda de linchamentos no Brasil, desigualdade, Copa do Mundo 2014 e limites, lições e legitimidade das manifestações populares.

Destaco alguns trechos:

"Divirjo da tese de que decisões proferidas pelo STF fora das ações de controle abstrato tenham também eficácia erga omnes. Não concordo com a posição de que teria ocorrido mutação constitucional no art. 52, X, da Constituição e que agora qualquer decisão do STF em matéria de controle de constitucionalidade já possui ipso jureeficácia geral e vinculante. “

"o STF não detém o poder de dar a última palavra na interpretação constitucional, nem muito menos possui o monopólio no campo da hermenêutica constitucional. Começo do mais simples: não há monopólio interpretativo do STF (…) A pergunta sobre quem dá a “última palavra” me parece errada, pelo fato de que não há uma última palavra na hermenêutica constitucional.”

"Há uma tendência global de diálogo entre tribunais constitucionais e entre estes e as cortes internacionais de direitos humanos, que pode propiciar um benfazejo aprendizado recíproco. (…) "Há uma tendência global de diálogo entre tribunais constitucionais e entre estes e as cortes internacionais de direitos humanos, que pode propiciar um benfazejo aprendizado recíproco.”



Abaixo o link e a entrevista completa: 



25.05.14

O STF não é o centro do constitucionalismo

Conversas acadêmicas com Daniel Sarmento


Quem é: Daniel Sarmento é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com pós-doutorado na Universidade de Yale (EUA). Atualmente é Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Procurador Regional da República. É fundador da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ. É autor/coautor/organizador, dentre outros, dos livros Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho, Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica e Por um Constitucionalismo Inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais.
Nesta entrevista por e-mail, Daniel Sarmento conversa com o blog Os Constitucionalistas sobre escolha do Direito Constitucional, neoconstitucionalismo, constitucionalismo democrático, interpretação constitucional fora dos tribunais, controle de constitucionalidade, ativismo judicial, processo de deliberação do Supremo Tribunal Federal, reclamação como meio de revisão das decisões do STF, última palavra na jurisdição constitucional, julgamento da ADI 4.650, doações eleitorais, messianismo judicial, direitos fundamentais, democracia, processo eleitoral, papel representativo do Supremo, diálogos com Cortes Constitucionais, influência da TV Justiça, projetos da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ, onda de linchamentos no Brasil, desigualdade, Copa do Mundo 2014 e limites, lições e legitimidade das manifestações populares.
Por que o senhor escolheu o Direito Constitucional?
Vou citar três causas. Em primeiro lugar, eu sempre gostei muito de ler e estudar áreas não jurídicas, especialmente Filosofia Política, História e Sociologia. Eu acho que, no âmbito do direito positivo, o Direito Constitucional é o que dá mais abertura para esta interdisciplinaridade.
Além disso, eu também sempre fui muito sensível às injustiças e, desde que me entendo por gente, quis dedicar minha vida profissional a combatê-las. Tenho um lado da minha personalidade utópico, até meio quixotesco. Estou convencido de que o Direito Constitucional é um poderosíssimo instrumento de luta contra a opressão e injustiça de todas as naturezas. Vejam a riqueza dos princípios de conteúdo emancipatório da Constituição de 88! Como digo aos meus alunos, o Direito Constitucional pode ser uma verdadeira “arte marcial”, que, empregada por pessoas engajadas, tem como fazer a diferença na transformação da sociedade.
Finalmente, tive dois professores na graduação da UERJ que me inspiraram muito, cujos exemplos e ensinamentos me estimularam a seguir o caminho do Direito Constitucional: Luis Roberto Barroso, de Constitucional, e Gustavo Tepedino, que, apesar de professor de Direito Civil, adota uma perspectiva fortemente impregnada pelo Direito Constitucional – ele é referência central do chamado “Direito Civil Constitucional”.
A Constituição é o que o Supremo Tribunal Federal diz que é?
Definitivamente não. Há uma frase famosa do Juiz da Suprema Corte norte-americana Charles Hugues que afirmou isso – “We are under a Constitution but the Constitution is what the Supreme Court says it is” -, e esta ideia é de vez em quando repetida no Brasil, em decisões judiciais, pela doutrina ou em comentários políticos. Esta ideia me assusta. O STF é um intérprete importante da Constituição, mas não o seu senhor. Ele também pode errar – e erra às vezes. Há mecanismos sociais e políticos legítimos para lutar pela prevalência de interpretação constitucional distinta da adotada pelo Supremo. Além disso, existe interpretação constitucional fora das cortes – por exemplo, no Parlamento, no espaço público informal, nas reivindicações dos movimentos sociais, na academia -, e ela não pode ser ignorada.
O Supremo pode, no julgamento de uma reclamação, alterar o entendimento que firmou na respectiva ação de controle abstrato? Nessa hipótese, julgada improcedente a reclamação, o STF não rescindiria a decisão-paradigma?
Entendo que sim, quando a decisão anterior, proferida em controle abstrato, tiver declarado a constitucionalidade do ato normativo, mas não quando ela tiver pronunciado a sua inconstitucionalidade. Se não me engano, isto aconteceu em caso envolvendo a constitucionalidade dos critérios para definição de miserabilidade para fins de acesso ao beneficio de assistência social, previsto no art. 203, V, da Constituição. Numa primeira decisão, o STF reconheceu, em controle abstrato, a validade do critério adotado pelo legislador, de renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo per capita. Em reclamação posterior, em que se alegava ofensa à primeira decisão, a Corte reviu sua orientação original, para afirmar que outros elementos podem indicar a miserabilidade de pessoas idosas ou com deficiência, cujas famílias tenham renda superior àquela fixada pelo legislador. Penso que o STF não pode ficar vinculado de modo absoluto à sua própria jurisprudência, mesmo a firmada em controle abstrato, sob pena de se bloquear a interpretação evolutiva da Constituição e a mutação constitucional pela via jurisdicional. A reclamação pode ser um meio para que a Corte reveja seus erros ou atualize a sua jurisprudência, já que, como disse antes, os ministros são falíveis e não deuses do Olimpo.
Agora, não me parece que a decisão da reclamação seja equivalente a uma ação rescisória, que, aliás, é vedada em sede de controle abstrato de normas pelas Leis 9.869 e 9.882. É que, na minha opinião, a decisão proferida na reclamação não possui eficácia erga omnes, mas inter partes, não obstante sirva para sinalizar aos demais órgãos do Judiciário e à Administração a nova orientação do STF. Divirjo da tese de que decisões proferidas pelo STF fora das ações de controle abstrato tenham também eficácia erga omnes. Não concordo com a posição de que teria ocorrido mutação constitucional no art. 52, X, da Constituição e que agora qualquer decisão do STF em matéria de controle de constitucionalidade já possui ipso jureeficácia geral e vinculante. Acho que o texto da Constituição não comporta esta exegese.
O senhor é neoconstitucionalista? O que é o neoconstitucionalismo?
Vou inverter a ordem da pergunta. Não gosto muito da expressão “neoconstitucionalismo”, que foi popularizada no Brasil por uma ótima coletânea do professor mexicano Miguel Carbonell, que circulou muito por aqui, e por excelentes artigos do Luis Roberto Barroso. Há muitas diferenças entre autores que se dizem neoconstitucionalistas: uns defendem o positivismo – uma versão suave do positivismo, conhecida como “positivismo inclusivo” – outros são radicalmente antipositivitas; uns se dizem liberais, outros comunitaristas. O que os neoconstitucionalistas parecem ter em comum é a defesa de um novo paradigma jurídico que envolve, dentre outros elementos: a) a afirmação da centralidade da Constituição no ordenamento jurídico; b) o reconhecimento da força normativa e irradiante dos seus princípios; c) o recurso a métodos mais flexíveis na adjudicação, como a ponderação de interesses; d) a defesa da permeabilidade da interpretação jurídica a considerações de ordem moral; e) a constatação e defesa de um certo protagonismo judicial na vida política e social,  que se justificaria pela necessidade de proteção e promoção dos princípios constitucionais, especialmente os ligados aos direitos fundamentais.
No Brasil, uma crítica que tem sido feita à recepção do neoconstitucionalismo – eu mesmo a fiz em vários textos, bem como outros autores, como Humberto Ávila e Marcelo Neves – é a de que ele tem dado ensejo ao excessivo arbítrio judicial, através do que chamo de “carnavalização do princípios constitucionais”. Os princípios constitucionais, de teor mais vago, acabam servindo para tudo, no contexto de uma cultura jurídica que vê como mais cult a sua invocação do que o recurso às regras legais. Com frequência, tais princípios são empregados sem a devida fundamentação. Paga-se por isto um preço caro em termos de segurança jurídica – já que as decisões judiciais se tornam imprevisíveis -  e de democracia – pois os cidadãos ficam sujeitos aos gostos e às preferências de magistrados não eleitos.  Além disso, no cenário de “cordialidade assimétrica” em que vivemos, o recurso indiscriminado a princípios fluidos pode ser uma forma oblíqua de se legitimar o uso do “jeitinho”, em favor dos amigos e dos mais poderosos.  Estes, porém, são problemas da recepção do neoconstitucionalismo em nossas práticas judiciais, e não da teoria neoconstitucional, que não endossa este uso abusivo e pouco fundamentado de princípios abertos.
De todo modo, não me considero um neoconstitucionalista, sobretudo por uma razão. Para os neoconstitucionalistas, o Judiciário é o protagonista do Direito Constitucional. Não nego o fenômeno da judicialização da política, mas prefiro uma outra linha teórica, que, apesar de reconhecer o papel importante do Judiciário na defesa dos direitos fundamentais e proteção da democracia, afirma a centralidade dos movimentos sociais e da sociedade civil na arena constitucional. Não se trata de apenas afirmar que tais atores podem participar da jurisdição constitucional – como amici curiae ou expositores em audiências públicas – mas de reconhecer que há muito Direito Constitucional fora dos tribunais. Nesta questão, o meu pensamento se aproxima de uma corrente que é conhecida nos Estados Unidos comoconstitucionalismo democrático –  que não se confunde com o constitucionalismo popular, de autores como Mark Tushnet, Larry Kramer e Jeremy Waldron, refratários controle jurisdicional de constitucionalidade. Seus principais expositores são, na minha opinião, os professores Jack Balkin, Robert Post, Reva Siegel, Sanford Levinson e Barry Friedman.
O senhor participou do processo que resultou na propositura da ADI 4.650. Como nasceu a ideia dessa ação?
A ADI 4.650 questiona o financiamento das campanhas políticas por empresas, bem como os critérios hoje adotados para limitar as doações por pessoas naturais e os gastos feitos pelos próprios candidatos. A ação nasceu de uma representação que elaborei, juntamente com meu amigo Cláudio Pereira de Souza Neto. Encaminhamos a representação ao PGR e ao Conselho Federal da OAB, e este ajuizou a ação, nos exatos termos da nossa proposta.  A ideia original surgiu da nossa constatação de que as regras vigentes sobre financiamento alimentam a desigualdade, convertendo o poder econômico em poder político, e estimulam a corrupção, além de outras práticas não republicanas. Quisemos nos socorrer da jurisdição constitucional para equacionar um problema seríssimo do país, que o sistema político-representativo dificilmente resolveria por sua iniciativa própria, uma vez que os políticos que estão no Congresso e no Executivo foram eleitos por meio deste modelo viciado, e não têm, em geral, interesse em alterá-lo, pois dele se beneficiam.
O que se pede na ação nada tem de estranho à ortodoxia constitucional: busca-se que o STF invalide regras legais que violam claramente princípios constitucionais, como da igualdade, República, democracia e proporcionalidade. Inúmeros dados empíricos demonstram como estas regras sobre financiamento são nefastas para a nossa democracia, tornando a eleição dependente do dinheiro e os políticos dependentes dos seus doadores. Será que, neste cenário, alguém acredita que o “almoço é grátis”; que as grandes empreiteiras, principais doadoras, irrigam as campanhas com dinheiro por civismo?
Na primeira sessão de julgamento da ADI 4.650, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que cabe ao STF “empurrar a história” para superar os entraves da política. O senhor concorda com essa afirmação?
Sim e não. Concordo que o STF deve agir em favor dos princípios constitucionais diante do arbítrio ou descaso do sistema político. Concordo que é papel dos tribunais constitucionais atuar contra as preferências das maiorias ou dos grupos hegemônicos, quando seja essencial para preservar direitos das minorias ou das parcelas mais vulneráveis da população (que às vezes nem são minoria, no sentido estritamente numérico). Creio que foi isso o que Barroso quis dizer. Mas não concordo com a ideia de que os juízes sejam, ou devam se comportar como se fossem, sábios de toga, com a prerrogativa de reger uma sociedade infantilizada, apontando-lhes os caminhos para a redenção.
Mas, por outro lado, juízes constitucionais podem proferir decisões importantes em favor de direitos fundamentais e valores democráticos, as quais eventualmente assumem uma dimensão pedagógica, reforçando uma cultura de direitos e cidadania, e realimentando movimentos sociais emancipatórios. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos, no julgamento de Brown v. Board of Education, em 1954, e na decisão do STF sobre uniões homoafetivas. Porém, para mim, é óbvio que tais decisões só foram possíveis porque, antes delas, movimentos sociais reivindicaram na esfera pública, com eficiência, a superação do racismo nos Estados Unidos e da homofobia no Brasil. Não acredito que os juízes constitucionais sejam ou devam ser os “profetas morais” da Nação.
A sociedade pode se frustrar com o resultado da ADI 4.650? No voto-vista que proferiu, o ministro Teori Zavascki argumentou que só por messianismo judicial se poderia afirmar que, com a declaração de inconstitucionalidade, se caminhará para a eliminação da indevida interferência do poder econômico nos pleitos eleitorais. Como o senhor recebeu esse voto?
Acho que a sociedade brasileira iria se frustrar é se o STF não finalizasse logo o julgamento, sobretudo depois de se ter uma maioria já formada ….
Na verdade, a atuação do STF no caso nem contramajoritária é, pois está em plena convergência com a vontade da absoluta maioria da população, como ficou comprovado em pesquisas de opinião, mantendo também sintonia com recentes movimentos populares que têm reivindicado a depuração da nossa política representativa – o que passa, necessariamente, pela redução da influência do poder econômico sobre as eleições. A vedação de doações por empresas desagrada não ao povo, mas a alguns agentes políticos que se beneficiam do regime vigente, bem como a certos segmentos empresariais, que se valem das regras em vigor para promover seus interesses econômicos, de maneira nem sempre legítima.  A hipótese corresponde bem ao que a professora norte-americana Corinna Barrett Lain chamou de “upside-down judicial review”, que ocorre quando os órgãos representativos, em razão das suas disfuncionalidades, atuam contra as preferências da maioria, que acaba sendo “representada” pela via da atuação das cortes.
Portanto, respeito mas não concordo com o voto do Ministro Teori Zavaski. Definitivamente, não acho que seja messianismo judicial valer-se de princípios constitucionais para proteger a igualdade, a democracia e a moralidade pública. A interpretação da Constituição não é mero exercício intelectual abstrato, mas demanda a consideração da realidade concreta, sobre a qual incide o texto constitucional. E, no caso brasileiro, esta análise empírica revela os efeitos dramáticos das regras sobre financiamento sobre a nossa política representativa, que está caminhando a passos largos para se converter numa plutocracia, tamanha a influência do poder econômico sobre as eleições, como bem demonstrou o brilhante voto do Ministro Fux.
Agora, concordo que uma decisão judicial que vede doações por empresas, por si só, não será panaceia para os males da nossa política representativa. A eficácia social da decisão dependerá, em boa parte, da atuação de instituições como o Ministério Público e Justiça Eleitoral, para que haja fiscalização e punição dos que burlarem a vedação, valendo-se do caixa dois. De todo modo, acho que, ao impor o barateamento das campanhas, a decisão ajudará a combater as doações pelo caixa dois, pois tornará mais visíveis as discrepâncias entre campanhas milionárias e os valores contabilizados por candidatos e partidos.
O STF representa argumentativamente o cidadão?
Esta é uma construção do Robert Alexy, que, na minha opinião, é contrafática. Como descrição da realidade, não é adequada, mas pode ter alguma utilidade como um “ideal regulativo” sobre como deve se dar a atuação do STF. A ideia da Corte como representante argumentativo da sociedade não pode significar, evidentemente, que as inclinações majoritárias tenham sempre que prevalecer nos julgamentos – afinal um dos papéis centrais da justiça constitucional é contramajoritário –, mas sim que o Supremo deve tomar em consideração as expectativas normativas que brotam no espaço público, abrindo-se às diversas perspectivas presentes numa sociedade plural.
Às vezes se traça uma correlação entre a ideia de representação argumentativa e a realização de audiências públicas na jurisdição constitucional. Sou muito favorável às audiências públicas, à atuação dosamici curiae e a tudo o mais que possa democratizar e pluralizar as vozes presentes na jurisdição constitucional. Penso, porém, que a realidade é menos dourada do que pintam alguns otimistas. Há estudos comprovando que os ministros quase nunca citam, em seus longos votos, o que se debateu nas audiências públicas, que geralmente são presenciadas apenas pelo relator do feito.
Por outro lado, concordo com o Ministro Joaquim Barbosa, quando critica o acesso privilegiado que certos grupos econômicos e corporativos têm à jurisdição constitucional, o que pode abafar outras vozes que seriam importantes nos debates. Veja a seguinte questão: o art. 103, IX, da Constituição atribuiu legitimidade ativa às entidades de classe de âmbito nacional para a propositura de ações diretas.  A vontade clara e louvável do constituinte foi de facilitar o acesso da sociedade civil à jurisdição constitucional concentrada. No entanto, o STF tem entendimento consolidado de que só entidades que representem categorias profissionais e econômicas se enquadram no permissivo constitucional.  Por que? Por que não uma entidade nacional de mulheres, por exemplo, para questionar normas que contenham discriminação de gênero; ou uma entidade nacional do movimento indígena, para discutir questões que afetem este grupo étnico?  A limitação imposta pelo STF corresponde, em minha visão, a uma interpretação equivocada da Constituição, que contribui para afastar certos temas e vozes da arena da jurisdição constitucional, distanciando-a do ideal regulativo da “representação argumentativa”.
O Supremo é uma Corte ativista?
O conceito de ativismo é objeto de controvérsia. Há quem o utilize com carga necessariamente negativa, como os originalistas, nos Estados Unidos, que empregam o rótulo para criticar a jurisprudência progressista da Corte de Warren. É o caso, na doutrina brasileira, de Elival da Silva Ramos e de Lênio Streck. Eu prefiro adotar um uso neutro do termo, em que o ativismo denota uma atuação mais enérgica e proativa da Corte, que pode ser ou não legítima, dependendo do caso e de uma série de variáveis, que não teria como explicar aqui. Orientei uma brilhante dissertação de Mestrado sobre o tema, de Carlos Alexandre de Azevedo Campos – que deve ser publicada em breve -, em que se sustenta que o ativismo é “multidimensional”, envolvendo inúmeras facetas (Carlos Alexandre falou em ativismo metodológico, processual, horizontal ou estrutural, vertical ou intrainstitucional, dirigista, maximalista e antidialógico).
Acho que o STF tem sido ativista em algumas questões nos últimos quinze anos. Na primeira década de vigência da Constituição, a Corte era mais autocontida, talvez pela hegemonia de Ministros nomeados durante o regime militar, que não se sentiam muito confortáveis no papel de guardiães de uma nova ordem, cujos valores não compartilhavam integralmente.
Considero que a postura mais ativista da Corte foi correta em alguns casos, e equivocada em outros. A decisão sobre a união homoafetiva, por exemplo, me parece ativista, pois o STF se baseou em princípios constitucionais abstratos, de elevado teor moral, para resolver uma questão altamente controvertida na sociedade, não dando tanto peso aos elementos literal e histórico da interpretação constitucional. Foi, na minha opinião, uma excelente decisão, talvez a mais importante da história da Corte em matéria de direitos humanos, que protegeu os direitos mais básicos de uma minoria estigmatizada.  Já a decisão de Raposa Serra do Sol, na parte em que impôs condicionantes às futuras demarcações de terras indígenas, também foi ativista. Neste caso, porém, acho que foi um ativismo ilegítimo: o STF praticamente atuou como legislador e impôs graves restrições a direitos básicos de uma minoria étnica vulnerável, que estão em total desacordo com o texto constitucional e com a normativa internacional sobre direitos humanos. Ao julgar os embargos declaratórios opostos contra tal decisão, o lado negativo das condicionantes foi em certa medida suavizado, já que o Supremo esclareceu que elas não são vinculantes para outros casos, mas não foi eliminado, uma vez que tais restrições aos direitos indígenas foram confirmadas, tendendo a pautar a atuação do Judiciário brasileiro em outros processos.
O Supremo Tribunal Federal tem a última palavra?
Não. Na minha opinião, o STF não detém o poder de dar a última palavra na interpretação constitucional, nem muito menos possui o monopólio no campo da hermenêutica constitucional.  Começo do mais simples: não há monopólio interpretativo do STF. Como já disse, há inúmeros intérpretes da Constituição, como outros órgãos judiciais, o legislador, o Poder Executivo, os movimentos sociais, a imprensa, a academia etc. O professor norte-americano Sanford Levinson chamou de “protestante” a teoria constitucional que reconhece a legitimidade da atuação de vários intérpretes, e de “católica” a que afirma a autoridade exclusiva de um intérprete para definir o sentido do Constituição. A distinção vem do fato de que, para a ortodoxia católica, a única interpretação legítima da Bíblia é aquela feita pelas autoridades da Igreja, ao passo que os protestantes, desde Lutero, afirmam que cada fiel deve poder interpretar o texto sagrado à sua maneira, de acordo com a sua consciência. Sem entrar na discussão teológica – que definitivamente não é a minha praia – pelo menos no campo constitucional, a “teoria protestante” da interpretação, que reconhece a legitimidade da atuação de muitos intérpretes, é muito mais rica e democrática.
Quanto à última palavra, acho que não há resposta certa para pergunta errada. A pergunta sobre quem dá a “última palavra” me parece errada, pelo fato de que não há uma última palavra na hermenêutica constitucional. Existe – tem de existir – última palavra no processo judicial, mas não última palavra sobre o sentido da Constituição. Do ponto de vista descritivo, uma decisão judicial não tem o condão de por fim à disputa social sobre questões constitucionais controvertidas, como as que versam sobre a igualdade, dignidade humana, propriedade e sua função social etc. Os debates tendem a persistir na sociedade e não é incomum que os perdedores na arena judicial busquem mudar o resultado alcançado no espaço jurisdicional. Isto pode envolver mecanismos como a aprovação de emenda constitucional e a luta pela nomeação de novos juízes que compartilhem a sua visão sobre o tema.  Os professores Rodrigo Brandão, da UERJ, e Conrado Hübner Mendes, da USP, têm excelentes livros em que demonstram isto.
Sob o ângulo prescritivo, é ótimo que não haja última palavra, pois juízes constitucionais também podem errar e é importante que existam meios para correção dos seus erros. Não é incomum, inclusive, que juízes errem não a favor, mas contra os direitos fundamentais de grupos vulneráveis. A história é cheia de exemplos e isto tem acontecido com frequência no Direito Constitucional norte-americano contemporâneo.
Não é que eu defenda a possibilidade de invalidação política das decisões proferidas no controle de constitucionalidade – a chamada weak form of judicial review - que havia no Brasil sob a égide da Constituição de 1937, e teve o uso pervertido por Vargas, e é adotada hoje no Canadá (embora lá quase nunca seja utilizada). Há uma PEC tramitando no Congresso com este objetivo, que considero muito ruim e até inconstitucional. Mas acho, por exemplo, que invalidada uma lei pelo STF, o Congresso pode aprovar outra, de conteúdo similar, instaurando-se um diálogo entre as instituições. O STF pode mais uma vez invalidar a lei, mas também pode eventualmente rever a sua posição original, considerando os argumentos dados pelo Legislativo e pela opinião pública. Isso já ocorreu sob a égide da Constituição de 88, em questão atinente à aposentadoria especial de professores do ensino fundamental. Aliás, quando a Constituição estendeu os efeitos vinculantes das decisões do STF ao Judiciário e Administração, mas não ao Poder Legislativo (art. 102, Parágrafo 2º), me parece que o constituinte endossou esta posição. Não ignoro que há votos do STF afirmando que a Corte detém o “monopólio da última palavra” – mas acho que não funciona assim na prática, o que é bom.
É legítimo o Supremo recorrer a precedentes judiciais de outros países para interpretar a Constituição de 1988?
Acho que sim. Há uma tendência global de diálogo entre tribunais constitucionais e entre estes e as cortes internacionais de direitos humanos, que pode propiciar um benfazejo aprendizado recíproco. No Supremo, é comum a invocação de precedentes estrangeiros. Penso, contudo, que o uso do Direito Constitucional Comparado tem de ser feito de forma criteriosa, para evitar-se a importação de teorias e construções incompatíveis com nosso ordenamento positivo ou realidade social. Esta é uma advertência importante, pois não é incomum, na cultura jurídica brasileira, que se adote uma postura de emulação acrítica do que vem de fora.
Por outro lado, acho que deveríamos ampliar as fontes consultadas e invocadas pelos ministros, para além da Alemanha e dos Estados Unidos. Há países do terceiro mundo, como Colômbia e África do Sul, com jurisdição constitucional avançadíssima e que enfrentam problemas mais semelhantes aos nossos do que as nações desenvolvidas.  A jurisprudência da Corte Interamericana também deveria ser mais utilizada, não só porque tem decisões muito boas, mas sobretudo porque o Brasil se sujeita à sua jurisdição.  O Brasil é praticamente um pária em algumas questões sobre direitos humanos, como a submissão de civis a cortes militares, compostas majoritariamente por militares de carreira, que é rechaçada pela Corte Interamericana, com base em ótimas razões, que os juízes constitucionais brasileiros parecem ignorar.
A TV Justiça influencia o modo de agir, pensar e votar dos ministros do STF?
Acho que sim, isto me parece intuitivo. Soube de um estudo em andamento que comprova o aumento significativo do tamanho dos votos dos ministros depois que as sessões do plenário do STF passaram a ser televisionadas. O televisionamento provavelmente contribui para tornar as decisões mais “agregativas” e menos “deliberativas”, como sustentaram Virgílio Afonso da Silva e Conrado Hübner Mendes. É bastante provável que a exposição das sessões pela TV torne os ministros mais refratários a alterarem suas posições iniciais, depois de ouvir argumentos contrários dos colegas, talvez pelo medo de parecerem “fracos” ou “perdedores” aos olhos do público.
Mas se há uma perda em termos de deliberação interna, me parece que o televisionamento representa um ganho expressivo em termos de transparência e accountability da Corte, amplificando o seu diálogo externo com a sociedade. Considerando todos estes elementos, não defendo o fim do televisionamento, instituído por meio de iniciativa corajosa do Ministro Marco Aurélio.
O que o senhor mudaria no processo de deliberação do Supremo?
Acho muito ruim o processo de deliberação. Concordo com a imagem proposta por Conrado Hübner, de que o STF funciona atualmente como “11 ilhas” e não como uma Corte, que fale com uma só voz. Hoje é até difícil identificar a orientação do Supremo sobre temas controvertidos, pois os acórdãos contêm os fundamentos adotados pelo relator, que não são necessariamente acompanhados pelos demais ministros. Na decisão sobre a não recepção da Lei de Imprensa do regime militar, por exemplo, constou do acórdão, redigido pelo Ministro Ayres Britto, a proibição total de restrições prévias às matérias jornalísticas, inclusive as impostas por decisão judicial. Em sede de reclamação, interposta por um jornal que se insurgia contra decisão do TJ/SP que o impedira de publicar matéria sobre processo criminal envolvendo o filho do ex-Presidente Sarney, o STF afirmou que o que constava no acórdão não era a posição da Corte, mas só a opinião pessoal do relator, de caráter não vinculante. Aquela primeira decisão do STF, que afirmou a invalidade da Lei de Imprensa, teve uma dimensão simbólica extremamente positiva, ao sinalizar para a sociedade a centralidade da liberdade de expressão para a nossa democracia. Mas o processo decisório da Corte foi defeituoso, gerando incerteza e insegurança jurídica. Infelizmente, esta tem sido a regra e não a exceção.
Há várias mudanças importantes. Uma delas, proposta pelo Ministro Barroso, é a circulação prévia, entre os ministros, das minutas de votos. Isto permitiria que as posições dos colegas fossem levadas em consideração na decisão de cada julgador, fortalecendo a dimensão deliberativa do processo decisório.  A medida também pouparia tempo e energia, permitindo que os ministros, que têm uma carga de trabalho desumana, pudessem, por exemplo, ir para sessão sabendo que poderão simplesmente “seguir o relator”, sem a necessidade de preparar voto para tudo. Outras mudanças essenciais dizem respeito à necessidade de dar maior racionalidade e transparência à definição das pautas de julgamento e ao uso dos pedidos de vista. Estes últimos têm se convertido em meio de se postergar indefinidamente uma deliberação com a qual não se concorda, em que pese a previsão regimental de prazo para devolução dos autos, que na prática é letra-morta.
O que é a Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ? Por que o termo “Clínica”? Os direitos fundamentais no Brasil precisam de UTI? Quais são os outros projetos da Clínica? Quem é de fora da UERJ pode participar desses projetos? A Clínica é adepta do experimentalismo judicial?
Sou um dos fundadores da Clínica e estou muito empolgado com este projeto. A ideia de criá-la veio da constatação de que praticamente não há advocacia de interesse público no Brasil, focada em questões constitucionais. Já tinha a vontade de montar uma instituição assim na UERJ há algum tempo, mas tive agora a ajuda fundamental de duas alunas do Mestrado para concretizar este projeto – Juliana Cesário Alvim e Aline Osório. Além delas, há outros professores, alunos e ex-alunos da UERJ engajados na Clínica. É claro que nem todos tem a mesma participação nas atividades da Clínica. Eu, por exemplo, não atuo direta ou indiretamente nos processos, pois, como membro do MPF, sou impedido de advogar.  A Clínica também desempenha uma função educativa e acadêmica, capacitando nossos alunos para atuarem concretamente com direitos fundamentais.
“Clínica” é um nome já utilizado nacional e internacionalmente para este tipo de instituição. As clínicas jurídicas, muito comuns em universidades ao redor do mundo (sobretudo nos EUA), vêm se disseminando no Brasil, contribuindo para a consolidação de uma visão mais ampla sobre o papel das universidades e permitindo um diálogo maior com a sociedade civil. A atuação das clínicas é particularmente importante em contextos como o nosso, em que a atuação judicial pode ser ferramenta eficaz para o combate de violações sistemáticas de direitos humanos, especialmente de grupos vulneráveis, mas que demanda um domínio técnico do Direito, geralmente pouco acessível a estes grupos.
Acho que no Brasil, como sugerido na pergunta, alguns direitos, infelizmente, precisariam estar na UTI, mas estão fora dela, quase desassistidos. Provavelmente em estado mais grave que todos, e que piora a cada dia, estão os direitos fundamentais dos presos, encarcerados em “masmorras medievais”, como admitiu o Ministro da Justiça. Este, aliás, é um tema em que a Clínica pretende atuar, quem sabe para provocar uma intervenção mais profunda do STF na questão, como se deu na Colômbia, em que houve a declaração pela Corte Constitucional do “estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional… A gravidade do problema, a inapetência das instâncias políticas e administrativas para resolvê-lo, bem como a resistência de outros órgãos judiciais à garantia dos direitos dos presos – que tem grandes defensores no STF, como o Ministro Gilmar Mendes -  talvez aconselhem a busca de alguma solução por este caminho.
Quanto aos projetos judiciais, além da atuação na ADI 4650, a Clínica está representando o Grupo Tortura Nunca Mais na ADPF 289, que questiona a competência da Justiça Militar para julgamento de civis. Postulou-se o ingresso do Grupo como amicus curiae na causa. E está representando a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro – ACQUILERJ, num incidente de inconstitucionalidade no TRF da 2ª Região, em que se discute a constitucionalidade do decreto que disciplina a titulação das terras quilombolas. E outras atuações estão no forno … Nosso site éwww.uerjdireitos.com.br.
Quanto à participação de pessoas de fora, nossa clínica é formada por professores, alunos e ex-alunos da UERJ, mas estamos abertos a parcerias com outras pessoas e instituições, inclusive de fora do Estado.
Em relação ao experimentalismo judicial, se este for entendido como a busca de soluções criativas para problemas complexos relacionados a direitos, é esta mesmo a ideia da Clínica.
Como o senhor vê a atual onda de linchamentos? Estamos regredindo?
Vejo com muita preocupação. Caetano Veloso, nua letra de música, disse que “a mais triste Nação, da época mais podre, compõem-se de possíveis grupos de linchadores”. O linchamento é a barbárie, na sua face mais hedionda. É a encarnação mais cruel do que Boaventura de Souza Santos chamou de fascismo societal.
Dito isso, não acho que, como sociedade, estejamos regredindo. O Brasil tem avançado em questões importantes sob a égide da Constituição de 88. Não houve mais golpes, a oposição e imprensa funcionam com liberdade, os militares estão nos quartéis, o Judiciário e o Ministério Público têm a necessária independência.
Para mim, porém, temos ainda muito a fazer para enfrentar nosso problema mais grave, que é a desigualdade. Não me refiro só à desigualdade econômica, que têm diminuído no país, embora seja ainda enorme. Falo da falta de enraizamento da ideia básica de que todas as pessoas têm o direito de serem tratadas com o mesmo respeito e consideração. Aqui, o acesso a direitos ainda não se dá em bases igualitárias. A inviolabilidade de domicílio, por exemplo, vale para as residências da classe média, mas nas favelas a polícia entra na casa das pessoas quando e como quer, e até os juízes expedem mandados genéricos, às vezes englobando áreas com dezenas de milhares de casas. Certas violações de direitos continuam invisíveis, porque há pessoas que ainda “não contam” como sujeitos de direito, e, na prática, estão fora do pacto constitucional. Enquanto isso, certas compreensões estamentais persistem, como a surreal prisão especial para os portadores de diploma de curso superior.  É a entronização legal do “você sabe com quem você está falando?”… Este, porém, não é um problema novo no país – ele tem mais de cinco séculos. Ajudar a equacioná-lo é a principal tarefa do Direito Constitucional brasileiro.
É legítima a manifestação popular durante os jogos da Copa? Quais os limites? Quais as lições das manifestações de junho de 2013?
Claro que sim. É um legítimo exercício das liberdades de expressão, manifestação e reunião. Ademais, as manifestações populares são fundamentais para dar vitalidade à democracia, especialmente num contexto de crise de legitimidade das instituições representativas, como o que atravessamos. Fiquei muito empolgado com o ressurgimento destas manifestações no Brasil, desde junho do ano passado. E, no quadro atual, comungo da indignação dos manifestantes, ao ver, por exemplo, quanto se gastou para a realização da “Copa da Fifa”, considerando as carências profundas da sociedade brasileira em áreas como saneamento, educação e saúde. Ao ver também quantos direitos foram violados na realização de obras para este e outros “grandes eventos”, em que muitos milhares de famílias perderam suas casas, sendo privadas de sua moradia de forma muitas vezes arbitrária e cruel.
O limite para as manifestações é o respeito aos direitos de terceiros. Não é legítimo depredar o patrimônio público ou privado, nem muito menos atingir a integridade física ou a vida de outras pessoas. Porém, vejo com preocupação as tentativas de se criar uma nova legislação mais repressiva diante dos excessos cometidos em manifestações por grupos como os black blocks. Isto tem toda a cara de “Direito Penal do inimigo”, de feições tão autoritárias. Por outro lado, ainda mais grave do que os excessos cometidos por manifestantes foram aqueles perpetrados pelo Estado, que reprimiu algumas manifestações de forma muito violenta e arbitrária, chegando a prender pessoas porque carregavam vinagre (!!!) – usado por manifestantes pacíficos para diminuir os efeitos das bombas de gás lacrimogênio, usadas indiscriminadamente pela polícia.
Acho que a principal lição das manifestações de junho é a de que o povo tem poder, e que quando se mobiliza genuinamente, tem muito mais chance de conseguir o que pretende. Um bom exemplo foi a derrota da PEC 37, que, se aprovada, impediria o Ministério Público de investigar crimes, e aumentaria a impunidade. A PEC só caiu no Congresso porque esta era uma demanda veiculada nas manifestações.  Espero que a sociedade brasileira, que reaprendeu o caminho das ruas, passe a usá-lo com mais frequência. Para a promoção das mudanças de que o país tanto necessita, na direção do projeto generoso de sociedade contido na Constituição de 88, acredito mais na força da mobilização cívica de uma cidadania engajada do que em remédios estritamente jurídicos.
__________________
* Nota do blog: A pedido, a presente entrevista reproduz, ipsis litteris, as respostas do entrevistado.  E também a pedido, este Conversas acadêmicas não é ilustrado com foto do entrevistado.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Lançamento e debate do livro O NOVO TEMPO DO MUNDO, de Paulo Arantes

A Boitempo acaba de lançar o novo livro de Paulo Eduardo Arantes, pela coleção Estado de Sítio. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência, é o mapa possível de nosso tempo – um tempo em contínua guerra civil, assinalado pela ausência de perspectivas, estado de exceção permanente, catástrofe ambiental, colapso urbano e militarização do cotidiano: uma era de perpétua emergência, em que esquerda e direita confluem na gestão de programas de urgência.

Os ensaios que compõem o livro articulam reflexões sobre as manifestações de junho de 2013, o extermínio colonial, a economia de guerra, a indústria dos presídios, as UPPs, o trabalho nos campos de concentração, as revoltas nos guetos, o golpe militar de 64, no desafio de pensar a experiência da história em uma era de expectativas decrescentes.

Organizado pelo Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia, pelo Núcleo de Estudos Filosóficos e pelo Núcleo de Pesquisa Direito e Subjetividade, com a colaboração do Par - Partido Acadêmico Renovador e da Boitempo Editorial, a palestra seguida de debate acontecerá no Salão Nobre do Prédio Histórico da UFPR (1o andar) no dia 12 de maio, segunda-feira, às 19h. Haverá venda de livros no local.

Artigo - “Diálogo institucional” ou “business as usual”? STF, seletividade decisória, interesses econômicos e a copa do mundo da FIFA

Excelente artigo dos amigos e colegas da UNB para se pensar criticamente a realização da Copa, mas sobretudo a recente decisão do STF sobre a Lei Geral da Copa e a mal utilizada teoria dos diálogos. Resumindo em uma frase: "A economia contra a democracia: a FIFA e o regime jurídico de exceção da copa"

http://www.criticaconstitucional.com/dialogo-institucional-ou-business-as-usual-stf-seletividade-decisoria-interesses-economicos-e-a-copa-do-mundo-da-fifa/

“Diálogo institucional” ou “business as usual”?   STF, seletividade decisória, interesses econômicos e a copa do mundo da FIFA
“Diálogo institucional” ou “business as usual”?
 STF, seletividade decisória, interesses econômicos e a copa do mundo da FIFA

                                  Gilberto Guerra Pedrosa (Mestrando em direito na UnB) e
         Pablo Holmes (mestre em direito pela UFPE e doutor em sociologia
pela Universidade de Flensburg, Professor de Teoria Política na UnB)


Na primeira semana de maio, o Supremo Tribunal Federal decidiu acerca dos questionamentos feitos à constitucionalidade da Lei Geral da Copa pelo Procurador Geral da República na ADI 4976. Em sua decisão, o STF salientou a importância do consenso institucional entre os poderes da república (Executivo, Legislativo e Judiciário) acerca de matérias políticas controversas como um dos parâmetros de julgamento da constitucionalidade e, ao final, decidiu a favor da constitucionalidade dos dispositivos legais.

Segundo entendemos, revela-se nessa decisão a emergência de um  discurso constitucional inspirado na ideia de que o arranjo de poderes deve funcionar na forma de um “diálogo institucional” entre os atores constitucionalmente relevantes, em nome da preservação e alargamento do regime democrático.[1]

Como costuma acontecer entre nós, discursos constitucionais da moda podem servir menos para aperfeiçoar os mecanismos da jurisdição constitucional e mais para legitimar interesses particularistas. Observando o caso da ADI 4976, a sensação clara é a de que o suposto “diálogo consensual” entre os poderes, usado na argumentação da corte para justificar o julgamento, serviu, na verdade, para legitimar uma submissão nada “democrática” das instituições de direito público do ordenamento jurídico brasileiro aos interesses econômicos da FIFA, suas subsidiárias e daqueles que sempre costumam ser beneficiados em um país tão desigual e excludente como o Brasil.

A FIFA como ator institucional?
Os interesses econômicos da Fifa, uma pessoa jurídica de direito privado constituída originalmente na Suiça, estão sensivelmente relacionados à decisão na ADI de nº 4.976. Ao contrário do que pode parecer, desde o ponto de vista constitucional, tratou-se na ação não apenas da constitucionalidade de normas internas da ordem jurídica brasileira, mas da relação entre nossa ordem constitucional a e os objetivos, sobretudo econômicos, da FIFA, uma superorganização transnacional com poder para pressionar e constranger Estados nacionais.
Claro que a copa tem uma conexão direta com a identidade nacional e será um megaevento capaz de divertir e alegrar a população. Ademais, ela pode ter uma dimensão política que transcende o simples entretenimento, significando uma projeção simbólica das potencialidades culturais, econômicas e sociais brasileiras para o mundo: uma expressão do soft power brasileiro fundado na diversidade étnica e cultural, no espírito de cordialidade e alegria nacionais. Longe de representarem apenas clichés, a imagem política de um país pode se traduzir de maneira concreta na geopolítica das nações, inclusive com possíveis ganhos econômicos traduzíveis em investimentos.

E, de fato, os argumentos econômicos se tornaram os mais importantes a justificar tudo que diz respeito à Copa do Mundo do Brasil de 2014. Para o bem, mas sobretudo para o mal.

Segundo a Consultoria Ernst Young, em estudo feito em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, as olimpíadas e a copa do mundo juntas gerariam mais de 6 milhões de empregos diretos e indiretos entre 2010 e 2014. Apenas a copa do mundo significaria investimentos da ordem de 142 bilhões de reais, acrescentando 63,8 bilhões à renda nacional. E segundo estimativas do governo central, ela renderia um incremento de até 10 bilhões na arrecadação tributária, nos diversos níveis federativos.

Bom para a economia? Melhor ainda para a FIFA. Já em 2013, a federação bateu todos os seus recordes anteriores de arrecadação devido à organização do torneio. Segundo o secretário-geral da entidade, Jérome Valcke a previsão de faturamento da Fifa com a copa realizada no Brasil é de US$ 4 bilhões só em receita comercial. Ela seria, assim, a competição mais rentável da história, gerando para a FIFA U$S 1,7 bilhões a mais que a copa realizada na África do Sul de 2010.

Os números bilionários se tornam tão poderosos que eles eliminam quaisquer preocupações com os efeitos destrutivos que os imperativos econômicos podem ter sobre as instituições jurídicas e políticas. Presume-se que tudo que gere crescimento, e lucros, é necessariamente benéfico para o conjunto da sociedade, não importando a que custo as cifras sejam produzidas: seja o desrespeito a direitos individuais e coletivos e a procedimentos democráticos ou a produção de instabilidades institucionais por meio de um verdadeiro regime jurídico de exceção para satisfazer os interesses de uma entidade privada.

Os incontáveis relatos de violações de direitos de populações locais graças aos esforços monumentais para a realização do evento são diversos. Eles vão desde a remoção forçada ou por meio de pífias indenizações a moradores do entorno de áreas a serem utilizadas de alguma forma para o torneio, até a repressão violenta de manifestações contra a competição. Várias violações foram objeto de denúnciafeita por organizações não-governamentais e pela relatoria da ONU para o direito à moradia durante a 23° reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Os custos que talvez sejam mais difíceis de mensurar dizem respeito, porém, ao próprio funcionamento das instituições. Como condição para a realização da Copa do Mundo no país, a FIFA impôs ao Estado brasileiro uma série de constrangimentos, muitos deles completamente antagônicos ao funcionamento normal das estruturas políticas e jurídicas nacionais. Essas condições de exceção se materializaram nos diversos marcos legais da copa, que criaram uma verdadeira ordem jurídica paralela a regular a preparação e a realização do evento, assim como o regime de responsabilização por quaisquer danos ou violações que pudessem ser imputadas a FIFA durante e após o torneio.

Por isso, a ADI 4976 não tratava apenas da regulação recíproca entre os poderes da República Brasileira. Ela dizia respeito a uma tensão mais profunda entre racionalidades sociais distintas. Uma disputa entre os imperativos econômicos, representados pelas pretensões de eficiência na organização do evento impostas pela FIFA e materializadas em seu regime jurídico de exceção, e entre os imperativos democráticos da ordem constitucional. Dar nomes aos bois é muitas vezes importante, para que possamos saber como caminha a boiada. E, no caso dessa triste decisão do tribunal, parece que a boiada marchou firmemente para pisar questões constitucionais fundamentais em nome de vantagens econômicas cujo significado pode nem sempre ser exatamente proveitoso para o conjunto da população.

A economia contra a democracia: a FIFA e o regime jurídico de exceção da copa
A realização da Copa do Mundo de 2014 criou, desde o ponto de vista institucional, uma verdadeira ordem de exceção exceção em relação à ordem constitucional brasileira, com repercussões nas mais diversas esferas de direitos.

No Congresso Nacional, o pedido de urgência foi cumprido com êxito para dar maior celeridade e garantir  a aprovação de todas as exigências legislativas estabelecidas pela FIFA. A Lei 12.350/10dispunha sobre diversas isenções tributárias (IRPJ, PIS, COFINS, IPI, IOF etc) concedidas à entidade, as quais atingiriam quase R$ 560 milhões, e um regime diferenciado de tributação para empresas envolvidas nas reformas e construções de estádios de futebol. A Lei 12.462/11 estabeleceu um regime excepcional de licitações e contratos para obras e serviços ligados a copa das confederações, copa do mundo e jogos olímpicos. E a Lei 12.663/12, a “Lei geral da Copa”, que transformou a FIFA em um entidade jurídica praticamente soberana, com poderes e prerrogativas que a colocam acima da constituição federal.

A copa da Fifa também estimulou de forma inusitada ações do Executivo e do Judiciário.
Em outubro de 2013, a súmula 502 do STJ afastou qualquer possibilidade de entendimento capaz de flexibilizar o tipo penal de crime autoral, adequando-o perfeitamente aos tipos estabelecidos pela Lei Geral da Copa (Capítulo VIII) para a proteção de direitos autorais da Fifa. Desse modo, ficava estabelecido que os direitos de propriedade intelectual da FIFA se distinguem dos direitos de propriedade de quaisquer outros cidadãos ou empresas, nos termos da Lei 9.610/98 (por sinal já resultada de imposição graças às negociações da OMC). E, em dezembro de 2013, a portaria normativa de nº 3.461 do Ministério da Defesa denominada “Garantia da Lei e da Ordem”, estabeleceu um regime excepcional para o “controle e distúrbio do ambiente urbano”.

A agilidade como esses mecanismos foram aprovados no congresso e incorporados em diversos planos institucionais só não é mais surpreendente que a forma acrítica como as mais absurdas exceções foram incluídas no ordenamento jurídico de modo a dar um status especial à FIFA. O Estado brasileiro parece ter se comportado, nesse processo, menos como uma organização democrática, em que procedimentos deliberativos são fundados na igualdade jurídica e política e mais como um sócio-investidor, numa busca interessada sem limites por otimizar os interesses econômicos de seus parceiros econômicos numa empresa lucrativa.
Os conflitos entre os imperativos econômicos de eficiência e lucratividade com as estruturas democráticas de deliberação e os mecanismos constitucionais de regulação jurídica parecem ser, aliás, algo que acompanha a realização desses megaeventos esportivos por organizações transnacionais privadas.

A dificuldade de conciliar a “eficiência” organizacional com os constrangimentos institucionais de um Estado de Democrático de Direito foram, aliás, objeto de já famosos comentários de dirigentes da FIFA. O secretário-geral da entidade, Jérôme Valcke, afirmou, por exemplo, ser mais fácil organizar copas do mundo em países com menos democracia. E ao fazer uma comparação entre Rússia e Alemanha, ele afirmou que “quando você tem um chefe de estado forte, que pode decidir, assim como Putin poderá ser em 2018, é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha, onde você precisa negociar em diferentes níveis”.

O que, num primeiro momento, pode parecer uma ode (conhecida entre nós) à eficiência do mercado, em detrimento das implicações um tanto “populistas” da democracia, se desfaz quando consideramos quais as exigências feitas pela FIFA, e materializadas no regime jurídico de exceção da Copa, e como essas exigências rompem com os fundamentos da igualdade jurídica do nosso ordenamento constitucional. Como sempre, a ideia de que a eficiência do mercado redime a sociedade de quaisquer considerações políticas sobre a distribuição dos recursos e sobre os limites jurídicos dos ganhos frente aos direitos individuais e coletivos de terceiros parece ter um e único motivo: o benefício particularista de interesses, tornados invisíveis.

Diversas entidades não-governamentais e internacionais tem alertado, exatamente, que a distribuição dos benefícios trazidos pelo evento parece se dar de modo tão desigual, que restam duvidosos se seus resultados podem ser vantajosos para o conjunto da sociedade. O Observatório das Metrópoles além de vários pesquisadores em diversas cidades sede tem denunciado a forma violenta e muitas vezes ilegal como moradores tem sido removidos para a realização das obras da copa. E diversos urbanistas tem chamado a atenção para os possíveis impactos nocivos trazidos às cidades pelo torneio.

Outras cidades e Estados do mundo já vem percebendo claramente que as mega-cifras relacionadas aos megaeventos não são nenhuma garantia de que eles representem um retorno social digno de ser comparado aos transtornos e constrangimentos à ordem democrática local. No início deste ano, a cidade de Estocolmo declinou de sua candidatura para sediar as olimpíadas de inverno. E um dos políticos locais justificou assim a desistência: “Quando se trata de custos deste calibre [3,6 bilhões de reais], os cidadãos que pagam impostos exigem de seus políticos mais do que previsões otimistas e boas intuições [argumentação do Comitê Olímpico sueco]. Não é possível conciliar um projeto de sediar os Jogos Olímpicos com as prioridades de Estocolmo em termos de habitação, desenvolvimento e providência social”.

É verdade que a copa pode trazer benefícios. Mas a única forma de fazer com que esses benefícios possam justificar os tremendos esforços do poder público é insistir na garantia de que a realização dos eventos se adeque ao ordenamento jurídico, sem que sejam realizadas violações aos princípios fundamentais da ordem constitucional democrática.

A ADI 5976 e a decisão do Supremo Tribunal Federal
A Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 4976, cujo relator foi o min. Ricardo Lewandowski, questionava entre outras coisas, a responsabilização objetiva da união por quaisquer prejuízos causados pela FIFA a terceiros e em casos fortuitos, durante a realização da Copa; o pagamento de prêmios e auxílios mensais a jogadores das seleções brasileiras campeãs em copas passadas e a isenção, oferecida às custas da união, à Fifa e suas subsidiárias do pagamento de quaisquer taxas e custas judiciais.
A ação questionava, assim, a constitucionalidade de apenas alguns dos diversos dispositivos que estabeleceram o regime jurídico de exceção da copa, e que garantiam à FIFA uma série de prerrogativas completamente excepcionais.

O STF decidiu, com o único voto contrário do Min. Joaquim Barbosa, que todos esses dispositivos eram constitucionais. E, para justificar a decisão, recorreu a uma interessante argumentação, que parece ter feito uso de nova moda teórica no discurso constitucional brasileiro.

Em seu voto, o min. relator Lewandowski ressaltou que a isenção concedida à Fifa e suas subsidiárias quanto às custas e despesas judiciais não contrariam o princípio da igualdade presente na Constituição, que se manifesta no princípio da isonomia tributária. Para ele, a própria CF prevê a possibilidade de isenções fiscais, em seu § 2º, art. 150 da Constituição Federal. Para ele, mais importante seria o efeito político-econômico do evento, dotado “de inegável potencial de gerar empregos e atrair investimentos”, que configuraria “um interesse constitucionalmente relevante”.

Em relação à responsabilização objetiva da união por possíveis danos causados pela FIFA ou suas subsidiárias a terceiros, o ministro alegou que o art. 37 da CF não esgota o tema da responsabilidade objetiva, visto que há outras previsões legais, como no caso de acidentes nucleares, em que se aplicaria a teoria da responsabilidade objetiva integral, sem ser necessária a verificação de nexos de causalidade entre uma ação e o dano.
De modo geral, a justificativa dos ministros, seguindo a posição do relator, variou entre um extremo pragmatismo consequencialista acerca dos supostos benefícios econômicos da copa e uma consideração acerca de um suposto consenso político institucional, dos poderes da República, acerca do “pacto” firmado entre o Estado brasileiro e a FIFA em torno da realização do torneio.

O ministro Barroso, por exemplo,  argumentou, a contrario sensu de suas posições mais ativistas em outras ocasiões, que a Lei Geral da Copa teria sido “aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo chefe do Poder Executivo”, não sendo cabível ao supremo intervir sobre os juízos de “conveniência e oportunidade tomadas pelos agentes públicos eleitos”. Direção que foi acompanhada por diversos outros ministros.
O subtexto da argumentação de diversos ministros acentuava, em suma, a interessante suposição de que a convergência entre os poderes executivo, legislativo e mesmo o judiciário, pareciam “conspirar” a favor da constitucionalidade dos dispositivos do regime jurídico criado para a realização da copa. O Brasil teria, nas palavras do Ministro relator, assumido “livre e soberanamente” compromissos à época de sua candidatura, algo que deveria agora ser respeitado pela Corte no seu juízo sobre a constitucionalidade da Lei 12.663/12.
Desse modo, o STF se exime de controlar a constitucionalidade do regime jurídico da copa à luz dos princípios constitucionais da igualdade jurídica, e das regras constitucionais que dificilmente autorizariam as diversas exceções criadas em favor da FIFA. Os argumentos para isso são reduzidos à consideração da força inquestionável dos imperativos econômicos e dos imperativos políticos que não necessariamente se coadunam com as estruturas jurídicas que possibilitam qualquer democracia. Como se a própria economia, para seu funcionamento razoável, não exigisse mecanismos de certeza jurídica baseados em alguma autônoma do sistema jurídico em relação a interesses particularistas tanto econômicos quanto políticos.

Alterar o regime de propriedade, o regime tributário, o regime de responsabilidade civil e o regime penal do país em benefício de uma empresa privada dificilmente resistiria a qualquer teste básico de consideração constitucional à luz das exigências de igualdade jurídica frente a outros atores privados ou mesmo atores públicos. A verdade é que o regime jurídico de exceção da copa estabelece restrições a direitos de terceiros e garante privilégios particularistas a uma entidade privada que seriam vedados até mesmo ao Estado brasileiro. E, ao fazê-lo, introduz uma série de restrições de direitos que são igualmente essenciais à estabilidade democrática e econômica que depende de uma autonomia mínima do sistema jurídico.

Diálogos institucionais ou auto-contensão? A copa como (big) “business as usual”
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem sido objeto de intensos debates públicos e acadêmicos, de acordo com um diagnóstico muitas vezes pouco preciso acerca de uma “judicialização da política”. A expansão de seus poderes, na esfera do controle concentrado e difuso de constitucionalidade, suscitou, assim, críticas e disputas acerca do seu papel no concerto institucional dos poderes.

De um lado, tem-se feito severas críticas a um exercício expansivo da jurisdição constitucional capaz de limitar o exercício do poder legislativo e executivo, fundados na legitimação eleitoral tão importante em uma democracia. De outro, há críticas relevantes à expansão de um discurso constitucional baseado em uma principiologia vaga e imprecisa, que  permitiria um uso ilimitado dos poderes constitucionais do tribunal, muitas vezes de modo contraditório e instável.

Em suma, a crítica seria formulada da seguinte forma: Uma juristocracia limitada apenas por aquilo que o próprio tribunal metodologicamente aceitável, de acordo com certas teorias da moda que servem de mecanismo retórico de justificação, significaria uma ameaça aos mecanismos típicos da democracia moderna, em que o direito deveria se conectar, em última análise, às estruturas políticas fundadas na soberania popular.
De fato, a inflação discursiva da retórica dos princípios parece muitas vezes ser um pretexto para dar conta de uma complexidade social extremamente explosiva, sobretudo num país marcado por estruturas sociais extremamente excludentes e desiguais. Ao recorrer a mecanismos altamente flexíveis na fixação de seus parâmetros decisórios, o tribunal pode muitas vezes legitimar jurisdição constitucional que aquiesce com estruturas particularistas e com a violação de direitos básicos individuais e sociais dos setores mais pobres, excluídos mesmo da população.

As críticas feitas ao STF em relação à expansão de seus poderes e à sua inflação principiologista levaram crescentes conflitos, principalmente com o legislativo. E esses conflitos crescentes parecem ter levado o tribunal, mais recentemente, a uma inflexão, em algumas circunstâncias pontuais, na direção de alguma medida de auto-contensão.

Entrementes, eis que surge mais uma elegante teoria a justificar o comportamento do tribunal, tanto do ponto de vista do exercício expansionista do seu poder, como de seus esforços pontuais em realizar algum tipo (bem circunstancial e seletivo) de autocontrole.

Na bolsa das teorias, emergiu nos últimos anos o diagnóstico, de fato interessante, por parte de teorias neo-institucionalistas de que as relações entre os poderes republicanos não precisam ser vistas a partir de um desenho institucional fixo e conflitivo de competências.

Segundo esse diagnóstico, o comportamento dos poderes em um arranjo democrático não implicaria uma decisão última entre uma democracia popular e uma juristocracia expansionista. Em realidade, os poderes se relacionariam muito mais de acordo com um concerto mais ou menos construtivo de aprendizados recíprocos, baseados em “diálogos institucionais” em que cada parte avança, cede e concede, a depender das dinâmicas temporais de observação recíproca.

Em suma, ninguém teria de fato a última palavra sobre as decisões constitucionais, senão que as dinâmicas institucionais seriam responsáveis por construir consensos políticos que afetariam e vinculariam crescentemente os diversos poderes reciprocamente.

O diagnóstico teórico, em si, parece bastante plausível. Aliás, assim como no caso de outras teorias de metodologia constitucional, o problema não são as construções teóricas mais ou menos complexas que são importadas e incorporadas no discurso da corte. Como sempre, o problema está na transformação dessas teorias em mecanismos retóricos de justificação para a histórica seletividade das instituições do Estado brasileiro, costumeiramente empenhado em proteger interesses particularistas e em detrimento dos direitos fundamentais da maioria pobre e excluída da população.

No caso da copa do mundo da FIFA, o Tribunal visivelmente parece ter se deixado influenciar pela retórica dos diálogos institucionais para conceder ao concerto dos poderes a prerrogativa de ter construído um consenso político institucional em torno do pacto assumido pelo Estado brasileiro para a realização do torneio no país. O STF reconheceu que tanto o legislativo como o executivo (e também setores do judiciário) agiram em concerto para viabilizar o evento, e que não caberia ao tribunal qualquer consideração sobre o mérito dessa decisão, que implicava na série de absurdos jurídicos que levaria ao regime jurídico de exceção da copa.
Ora, as teorias neo-institucionalistas não são, porém, teorias propriamente jurídicas capazes de oferecer parâmetros decisórios para decisões de uma corte constitucional. Com origem no pensamento econômico, essas teorias se tornaram hegemônicas no campo da ciência política e, por meio dessa disciplina, vem sendo incorporada à analise das dinâmicas constitucionais dos poderes. Elas se preocupam muito mais em entender como se dão as interações entre diferentes instituições in the long run do que em oferecer quaisquer parâmetros decisórios.

Mas decisões tem sempre que se submeter a alguns parâmetros. Elas são sempre opções por uma possibilidade que exclui, necessariamente, outras. E seus parâmetros podem ser políticos (o interesse dos partidos, dos grupos sociais, dos indivíduos etc), econômicos (os interesses empresariais e individuais em ganhos monetários), científicos (a comprovação empírica ou a plausibilidade teórica de uma hipótese em detrimento de outra) ou, no caso, jurídicos (as regras e princípios internos a uma ordem jurídica constitucional, no caso de um Estado Democrático de Direito).

Teorias constitucionais podem oferecer mecanismos metodológicos para construir parâmetros decisórios no interior do direito. Mas, a rigor, é o compromisso do tribunal constitucional com a coerência do ordenamento e com as suas próprias decisões, à luz das regras e princípios constitucionais que devem orientar a decisão. A capacidade do sistema jurídico de funcionar, em alguma medida, sem se submeter diretamente aos interesses privados, particularistas, de grupos políticos, de poderes é condição fundamental para o funcionamento  de um regime democrático, e também para o funcionamento de outras esferas da vida social, como a própria economia de mercado, que não pode se reproduzir sem segurança jurídica e sem mecanismos que garantam igualdade formal de direitos.

No caso da copa do mundo, ao se eximir de julgar a conveniência e oportunidade das decisões políticas que uniram o Estado brasileiro aos interesses da FIFA, o STF não respeitou, como quis dar a entender, os poderes políticos do parlamento e do executivo.

As exceções absurdas feitas no ordenamento brasileiro em favor da FIFA por meio do regime jurídico de exceção da copa e o estabelecimento de um status supraconstitucional ao “pacto político” em favor da realização da copa poderiam, sim, ser objeto de controle jurídico-constitucional. Assim como poderão ser objeto de algum controle mínimo de constitucionalidade os dispositivos questionados na ADI de nº 5030 relativos às praticamente ilimitadas isenções fiscais concedidas à FIFA pela Lei 12.350/10, cujo relator é o Ministro Dias Toffoli.

Ao se eximir de realizar o controle constitucional jurídico, o tribunal parece ter decidido se redimir das críticas que vem sofrendo. Para tanto, parece não ter se preocupado tanto assim com a coerência do sistema jurídico. Algo que alguma (ou qualquer) teoria sempre pode justificar.

Por outro lado, o tribunal talvez tenha agido de modo coerente com a atávica e conhecida seletividade das instituições brasileiras e sua tendência a favorecer os interesses de grupos econômicos importantes capazes de oferecer benefícios, também seletivos, aos donos do poder: (Big) Business as usual.




[1] Agradecemos a Marcelo Neves pela intuição a respeito do mal uso da teoria dos diálogos institucionais no presente caso.