"Curiosamente, a aferição pela doutrina da viabilidade constitucional dos mecanismos cogitados tem se dado numa perspectiva estritamente jurídica, que não denota maior comunicação com a diagnose empreendida pela sociologia e pela ciência política, ignorando que o tema transcende as fronteiras do jurídico, e não pode ser adequadamente compreendida a partir de uma perspectiva parcial"
"Falta ao Direito tradicional, como técnica pura, aptidão para reformular a relação entre Estado e sociedade a partir de uma perspectiva efetivamente dialógica, horizontal e firmada na consensualidade. Disso decorre uma baixa adesão à proposta de integração da sociedade a uma arena de debates onde o diálogo se revela enfraquecido pela pouca informação quanto aos elementos que integram uma determinada problemática, e pela ausência de um vocabulário comum que permita o real estabelecimento da comunicação."
"O constitucionalismo democrático destacado por Post e Siegal[14] envolve justamente o reconhecimento dessa indispensável oxigenação do sentido constitucional a partir de um diálogo com os seus destinatários que permita que o desejo de mudança não se transforme em violência, mas encontre seus canais de vocalização junto às estruturas do poder. A manifestação democrática dos reais detentores do poder é de ser vista não como uma ameaça à estabilidade das instituições, mas como um lembrete de que estas estão a serviço do povo, e portanto, devem ser receptivas às suas percepções e demandas. "
http://www.supremoemdebate.blogspot.com.br/2013/07/o-direito-e-as-jornadas-de-junho.html
DOMINGO, 7 DE JULHO DE 2013
O Direito e as
jornadas de junho
Direito e
manifestações: Reação às "Jornadas de Junho" passa pelo campo
jurídico
Por José Ribas
Vieira, Cecilia Caballero Lois, Vanice Lirio do Valle e Margarida Lacombe
A celebração
de 25 anos da Carta de 1988 parecia alcançar uma sociedade num clima de
consolidação democrática e pacificação das relações, construído no leito da
Constituição-Cidadã. Eis que, à conta de uma decisão administrativa infeliz de
aumento de tarifas de ônibus, deflagra-se por todo o país uma reedição das
“Jornadas de Junho”, com a população nas ruas, num movimento que se inicia com
a resistência ao aumento de tarifas, e culmina por vocalizar um conjunto de
outros reivindicações que compreendem desde a ética na vida pública, o combate
à corrupção, a melhoria dos serviços públicos essenciais, etc.
O fenômeno
tomou de surpresa a classe política, que perplexa — diante da intensidade da
mudança, da quietude às dezenas de milhares de pessoas às ruas — buscou
construir soluções a partir do tratamento jurídico-institucional da pauta
expressa nas manifestações por todo o país. Assim, da natimorta proposição
formulada pela Presidente, de convocação de uma “Constituinte exclusiva”
dedicada à reforma política, passando pela convocação de um plebiscito
orientado à consulta à população sobre os parâmetros aplicáveis a essa mesma
reforma[1]; compreendendo ainda proposta de emendas constitucionais[2] e
legislação de toda ordem[3]; quase todas as reações institucionais às “Jornadas
de Junho” envolvem o campo jurídico.
Curiosamente,
a aferição pela doutrina da viabilidade constitucional dos mecanismos cogitados
tem se dado numa perspectiva estritamente jurídica, que não denota maior
comunicação com a diagnose empreendida pela sociologia e pela ciência política,
ignorando que o tema transcende as fronteiras do jurídico, e não pode ser
adequadamente compreendida a partir de uma perspectiva parcial.
A
incorporação no imaginário da sociedade brasileira da estabilidade
institucional e da normalidade na dimensão representativa do princípio
democrático[4] tematizou na esfera do Direito a segunda dimensão desse mesmo
vetor — aquela da participação. O Direito Administrativo foi o primeiro a
incorporar esse debate, explorando mecanismos institucionais destinados à
viabilização da participação cidadã na formulação das escolhas públicas[5];
escolhas essas que, como se sabe, implicam sempre em inclusões e exclusões.
Avança-se na reflexão, temática da participação à governança pública, até a
enunciação de um direito fundamental à boa administração[6], que teria na
ampliação dos autores das decisões, um elemento de qualificação técnica e de
legitimação dessas mesmas opções estratégicas.
O debate
alcança o Direito Constitucional por duas distintas provocações: de um lado, a
inequívoca opção da Carta de 1988 pela necessidade de edificação plural de
programas de ação do Estado[7]; de outro, a necessidade de incremento de
legitimidade de decisões que envolvam a cunhagem de sentido do mesmo Texto, em
tempos de construtivismo constitucional. Mais do que dar vida aos preceitos que
aludem expressamente à participação; o que se busca é a consolidação de
práticas institucionais do poder organizado que contemplem essa abertura aos
atores sociais.
Se no
Legislativo esse viés se tem por claro e há mais tempo — iniciativa popular de
leis e as audiências públicas no curso do processo deliberativo são ferramentas
conhecidas no âmbito do Parlamento — o mesmo não se pode dizer no que toca às
demais funções. Todavia, o isolamento institucional, fundado na pretensão de
purismo técnico que caracterizavam tanto função administrativa quanto a
judiciária não resistiu às exigências da sociedade do conhecimento.
Adentram ao
cenário mecanismos que buscam criar um canal de comunicação entre instâncias do
poder organizado; e deste com as diversas forças representadas na sociedade.
No campo da
Administração Pública, a chamada à superação dos riscos do Estado fragmentado
se dá pela recuperação dos ideais de coordenação entre instâncias de governo e
sociedade. Os instrumentos por excelência serão os colegiados e conselhos com
representação da sociedade; e ainda as consultas e audiências públicas, onde
supostamente se traria esses novas partícipes do processo de deliberação das
estratégias de ação estatal.
Mesmo o
Judiciário não se mostra infenso a essa onda de valorização da coletivização
das decisões. Assim, o velho debate em torno da legitimidade das decisões
judiciais se vê transposto da lógica da representação argumentativa
reivindicada pelo STF, para estratégias mais abrangentes de conquista deste
mesmo signo, como a realização de audiências públicas, sempre inauguradas com o
destaque de sua importância como elemento legitimador das decisões[8].
De outro
lado, a tentativa de superação de eventuais impasses entre as diversas
instâncias de poder organizado — que podem conduzir a um enfraquecimento da
própria autoridade do STF — introduziram na realidade brasileira a prática dos
diálogos institucionais[9], onde se pretende construir a efetividade do texto a
partir de uma perspectiva de indução e colaboração recíproca.
Elemento
inegável nessa trajetória do instrumental teórico que o direito vai oferecer à
participação, é uma incorporação desses virtuais novos interlocutores a uma
lógica de funcionamento que é pré-definida pelo próprio desenho institucional
que se afigura familiar a Executivo, Legislativo e Judiciário. Aqueles que se
somam à deliberação ordinária do poder (legislação, escolhas administrativas e
jurisdição) se veem integrados a esses jogos não segundo padrão de manifestação
que lhe seja natural, mas a partir de uma dinâmica, regras e de uma linguagem
que não é a deles (agentes sociais), mas sim a do poder organizado. Dá-se aí
uma insuperável tensão entre uma sociabilidade fluida e livre, e uma
institucionalidade rígida e organizada, como assinalado por Janine Ribeiro[10].
O bloqueio à expressão livre dessa sociabilidade se dá pela pretensão do poder
de seu enquadramento na rigidez institucional.
Essa tensão
inerente ao diálogo entre a sociedade livre e plural e a institucionalidade
formal e hierarquizada não é sequer percebida pelo Direito, que tem muito mais
identidade com estes últimos atributos que com a flexibilidade dos primeiros.
Falta ao Direito tradicional, como técnica pura, aptidão para reformular a
relação entre Estado e sociedade a partir de uma perspectiva efetivamente
dialógica, horizontal e firmada na consensualidade. Disso decorre uma baixa
adesão à proposta de integração da sociedade a uma arena de debates onde o
diálogo se revela enfraquecido pela pouca informação quanto aos elementos que
integram uma determinada problemática, e pela ausência de um vocabulário comum
que permita o real estabelecimento da comunicação.
Nos recentes
episódios das manifestações de junho, a resposta do direito envolve,
curiosamente, um conjunto de deliberações que supostamente ecoam as palavras de
ordem das ruas — mas decodificam esse querer coletivo a partir de sua própria
perspectiva, traduzindo-o num código que não tem (necessariamente) sentido para
a sociedade nas praças. Tomemos por exemplo a já referida PEC 90/11, que
afirmando constitua o transporte um direito social, pretende incorporar pela
via da proteção jurídica, o reclamo da sociedade pela má prestação do serviço
neste campo. Tal deliberação se traduz em resposta simbólica — posto que
evidente a distância entre a enunciação de um direito social e a sua garantia
com qualidade na realidade da vida.
Segunda
ilustração interessante dessa falta entrosamento entre as respostas no âmbito
do direito e os reclamos da sociedade desperta é a própria convocação do
plebiscito no tema da reforma política, encaminhada ao Parlamento pela
Presidente da República em 2/07/2013. A quantidade de variáveis envolvidas na
mensagem já revela que a consulta popular cogitada envolve muito mais do que um
voto de repúdio ao sistema hoje vigente — e essa era, na verdade, a mensagem da
ruas: isso que se tem não é o que se deseja. É natural que o manejo de um
instituto como o do plebiscito desperte indagações no que toca aos seus efeitos
jurídicos[11]; a questão está em que essas dificuldades técnicas são
ininteligíveis para a massa nas ruas, e podem soar como um simples exercício de
bloqueio pelo direito, que tendo a sua origem no povo, não deveria se pôr como
mecanismo de embaraço ao seu próprio querer[12].
Se as
Jornadas de Junho no Brasil dos 25 anos da Constituição de 1988 representam o
despertar da Cidadania que em sua promulgação a ela se associava inclusive no
apelido emprestado por Ulisses Guimarães (a Constituição-Cidadã), é preciso que
o construtivismo constitucional reencontre esse caminho para investir
igualmente no braço dos direitos, e naquele da política que não se resume à
partidária, mas que compreende a manifestação democrática do povo nas ruas, mas
também o provimento da incorporação dessa vontade popular à deliberação
pública. Limongi[13] destaca a despolitização da última década, com a perda
pela sociedade do sentimento de pertencimento a esse cenário onde se formulam
as escolhas públicas. O despertar das ruas evidencia uma superação desse estado
de anestesia em relação à vida política — o que reclama de outro lado, uma
revisão das instituições no sentido de viabilizar essa nova práxis, onde mesmo
as escolhas alocativas associadas à proteção de direitos fundamentais decorram
não de um obscuro critério tecnocrático, mas de um processo de formulação de
prioridades nas escolhas trágicas que o mundo da vida reclama.
O
constitucionalismo democrático destacado por Post e Siegal[14] envolve
justamente o reconhecimento dessa indispensável oxigenação do sentido
constitucional a partir de um diálogo com os seus destinatários que permita que
o desejo de mudança não se transforme em violência, mas encontre seus canais de
vocalização junto às estruturas do poder. A manifestação democrática dos reais
detentores do poder é de ser vista não como uma ameaça à estabilidade das
instituições, mas como um lembrete de que estas estão a serviço do povo, e
portanto, devem ser receptivas às suas percepções e demandas. É nessa adaptação
das estruturas institucionais postas pela Teoria do Estado e da Constituição
mais tradicionais aos reclamos da cidadania desperta que o Direito tem um papel
relevante de equilibrar o caráter democrático do Estado, com o per legem e sub
legem do agir do poder que se consolidaram como conquistas históricas.
Se o Direito
é ciência que pretende ordenar o convívio social, ele não se pode construir sem
uma visão real, enriquecida pelas demais ciências sociais, dessa coletividade
sobre a qual ele pretende incidir.
25 anos de
Constituição Brasileira são uma conquista democrática — mas o grande desafio
que os próximos 25 anos nos reservam é a aproximação entre Direito e Política —
ambos com as devidas maiúsculas.
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[1] A proposta encaminhada pela Presidente da
República em 2/07/2013 ao Parlamento sugere a convocação de um plebiscito que
compreenda 5 pontos: 1) financiamento das campanhas; 2) definição do sistema
eleitoral; 3) preservação eleição de suplentes para o Senado Federa; 4)
manutenção das coligações partidárias como possibilidade para os pleitos; e 5)
fim do voto secreto no Parlamento.
[2] Mereceram impulso junto ao Parlamento,
provocadas pelas manifestações de junho passado, a PEC 90/11, que inclui o
transporte como direito social e a PEC 349/01, que visa abolir o voto secreto
na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
[3] No campo das iniciativas legislativas, vale
indicar a aceleração no processamento do PL 6616/09, enviado pelo Executivo
durante o governo Lula, que torna corrupção crime hediondo; e o substitutivo do
deputado André Figueiredo (PDT-CE) ao Projeto de Lei 323/07, que vincula a
aplicação de recursos originários de royalties de petróleo à educação e saúde.
[4] É de Barroso a afirmação de que o sinal mais
candente do sucesso institucional da Constituição de 1988 foi sua aptidão para
conduzir o país e o exercício da politica em momentos de crise, sem que se
cogitasse de qualquer rutura na normalidade institucional (BARROSO, Luis
Roberto, “Vinte anos da constituição brasileira: o Estado a que chegamos”,
disponível em http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20081127-03.pdf,
acesso em 7 de janeiro de 2010.).
[5] É de Moreira Neto a incorporação ao cenário
doutrinário brasileiro da ideia de consensualidade como estratégia de
desenvolvimento da função administrativa, apartando-se de uma velha compreensão
da relação entre Estado e cidadania fundada em relações verticais e de
subordinação (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do Direito
Administrativo pós-moderno. Legitimidade – finalidade – eficiência –
resultados. Belo Horizonte: Editora Forum, 2008).
[6] VALLE, Vanice Regina Lírio do. Direito
fundamental à boa administração e governança. Belo Horizonte: Editora Forum,
2011.
[7] As referências a um dever de parte da
sociedade para com a promoção da seguridade social, da proteção à infância e
adolescência – dentre outras –permeiam todo o texto constitucional,
evidenciando que a delimitação do sentido daqueles direitos é atividade de
interpretação constitucional que não prescinde do concurso da cidadania.
[8]VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.).
Audiências públicas e ativismo: diálogos sociais no STF. Belo Horizonte:
Editora Forum, 2012.
[9] SILVA, Cecília de Almeida, MOURA, Francisco,
BERMAN, José Guilherme, VIEIRA, José Ribas, TAVARES, Rodrigo e VALLE, Vanice
Regina Lírio do. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010.
[10]RIBEIRO, Renato Janine. “O movimento que
pareceu sair do nada”, Jornal Valor Econômico, 24/06/2013; e “Marina Silva e as
cidadanias perdidas”, publicado no mesmo veículo, 1º/07/2013.
[11]A entrevista do Min. Gilmar Mendes à Folha de
São Paulo em 1o/07/2013 evidencia as dificuldades não só de caráter operacional
para a realização em si do plebiscito, mas ainda o conjunto de variáveis
relevantes ainda não equacionadas acerca em especial, dos efeitos do ali
deliberado sobre a atuação posterior do Congresso Nacional.
[12] É de se ter em conta que mesmo o conceito de
cláusulas pétreas insculpidas na Carta de 1988, tão caro aos juristas, suscita
ainda o debate em torno do “governo dos mortos”. Se essa contradita se põe
entre os técnicos, com maior razão a perplexidade se porá em relação à
cidadania.
[13] LIMONGI, Fernando. “Vontade popular pronta e
acabada é presunção”, publicado no Jornal Valor Econômico de 1o/07/2013.
[14] POST, Robert and SIEGAL, Reva B., Roe Rage:
Democratic Constitutionalism and Backlash. Harvard Civil Rights-Civil Liberties
Law Review, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper No. 131. Disponível
em SSRN: http://ssrn.com/abstract=990968,
acesso em 2/07/2013.
José Ribas Vieira é professor da UFRJ, da PUC-Rio
e da Ibmec-RJ.
Cecilia Caballero Lois é pós-doutora em Direito
pela PUC-Rio, mestre e doutora pela UFSC. É professora de Teoria da
Constituição dos cursos de pós-graduação e graduação da UFRJ e pesquisadora do
Observatório da Justiça Brasileira – OJB.
Vanice Lirio do Valle é procuradora do Município
do Rio de Janeiro e professora do PPGD/Estacio de Sá
Margarida Lacombe é professora adjunta da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Observatório da
Justiça Brasileira da UFRJ
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