Aqui vai uma breve análise crítica da PEC 33, exibindo alguns elementos concretos para pensarmos e decidirmos se ela é uma má iniciativa, meramente vingativa, ou uma boa oportunidade para se repensar a separação entre os poderes no Brasil, o arranjo institucional entre Legislativo e Judiciário e, principalmente, o papel do STF na definição do significado da Constituição.
Quem detém a última palavra
sobre o significado da Constituição: a PEC 33, seus limites e possibilidades
Miguel
Gualano de Godoy é Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR); Bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e Pesquisador do Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia
(UFPR).
Vera Karam de Chueiri é Professora de Direito Constitucional
(graduação, mestrado e doutorado) e Vice-diretora da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Paraná (UFPR). É Coordenadora do Núcleo de Pesquisa
Constitucionalismo e Democracia (UFPR).
A Proposta
de Emenda Constitucional 33 altera a quantidade mínima de votos de membros de
tribunais para a declaração de inconstitucionalidade de leis; condiciona o
efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à
aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão
sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição. Também estabelece que
caso o Congresso Nacional se manifeste contrariamente à decisão prolatada pelo
Supremo Tribunal Federal, a controvérsia seja submetida à consulta popular.
Como encarar
essa proposta de emenda à Constituição? Ela é reação vingativa do Poder Legislativo
contra o Poder Judiciário ou mera disputa de poder entre os juízes e legisladores
para definir quem tem a última palavra sobre o significado da Constituição? A
PEC 33 pode abrir novas possibilidades na forma como se encara a separação
entre os poderes e a forma de cada um exercer suas competências e funções? Este
breve artigo busca mostrar alguns elementos na construção dessas respostas.
A PEC 33
pode representar a primeira possibilidade de se estabelecer uma reflexão muito
mais profunda e também mais profícua sobre a separação entre os poderes e como
deve se dar a interação entre eles, especialmente quando essa relação envolve o
significado, conteúdo e alcance dos direitos e deveres previstos pela
Constituição de 1988.
O modelo de
separação entre os poderes adotado pela Constituição de 1988 é um modelo que
especifica as funções dos órgãos de Estado (executiva, legislativa e
jurisdicional) e, no âmbito de cada órgão, em atenção à estrutura federativa (união,
estados-membros e municípios), estabelece uma repartição de competências. O
Poder Legislativo tem a função primordial de legislar e fiscalizar o Poder
Executivo. Este, por sua vez, possui a função de governar e administrar o
Estado, através da fixação de diretrizes políticas, isto é, da elaboração e
execução de políticas públicas (em geral, criadas por lei). Ao Poder
Judiciário, ao seu turno, cabe a aplicação do direito e, ao Supremo Tribunal
Federal, em especial e principalmente, a defesa da Constituição. Não obstante,
as funções de governar, administrar, legislar e aplicar o direito sejam
especializadas e, assim, se definam a partir de um modelo de separação, elas
são interdependentes e devem estar comprometidas com algo mais substancial do
que a mera eficiência institucional, isto, é a democracia. Vale aqui a
pergunta: o poder se divide em benefício de quem e do que?
Nesse
sentido, ao se afirmar que ao Supremo Tribunal Federal (STF) cabe a defesa da
Constituição e daí se concluir que só ele, e apenas ele, pode definir qual é o
significado da Constituição tem-se uma compreensão limitada, desprovida de
justificação, conteúdo e legitimidade. Se é certo que o constituinte definiu no
art. 102 da Constituição da República que ao STF cabe a guarda da Constituição,
o significado dessa norma não é dado como a leitura mais apressada ou mais
ingênua quer fazer crer. Ao contrário, o conteúdo e alcance dessa norma deve
ser construído, definido pelo intérprete. Desta forma, o STF ao interpretar esse
seu dever previsto pela Constituição estabeleceu que ele, como guardião da
Constituição, é quem detém a última palavra sobre a interpretação da
Constituição. Vale aqui uma segunda pergunta: Por que razão é o STF o
intérprete privilegiado da Constituição e sua palavra, terminal, em relação ao
que quer dizer a Constituição?
Há, assim,
uma supremacia do órgão judicial (o STF) em relação à interpretação da
Constituição. Contudo, do ponto de vista democrático e deliberativo sobram
motivos para não naturalizar essa atividade como absoluta e exclusiva do STF,
bem como, para criticá-la. Isto, pois, ela
parte da correta separação funcional para chegar na equivocada conclusão
substancial de que o sentido da constituição se encerra naquilo que unicamente um
colegiado de ministros – de maneira não necessariamente deliberativa – diz que
é. Essa postura da supremacia judicial não fomenta uma ação conjunta,
coordenada e colaborativa entre os poderes na definição do que é a Constituição
e dela resulta uma disputa (e não um diálogo) entre os poderes sobre quem então
deve ter a última palavra. Assim, ao invés dos poderes buscarem de forma
dialógica e colaborativa a melhor resposta sobre o significado da Constituição,
eles passam a disputá-la, não importando se a resposta será boa ou ruim; se
protegerá ou não nossos direitos fundamentais .
É nesse
contexto de disputa sobre quem deve ter a última palavra, sobre o significado
da Constituição que surge, pois, a PEC 33. Ainda que não seja esta a melhor forma
de relação entre o legislativo e o judiciário, pois pressupõe um vencedor e um
perdedor (da disputa) sobre o sentido da Constituição, ela deve ser considerada
em seus termos. O que não é digno de consideração é o uso da PEC 33 como
raivosa reação do Congresso Nacional às atuações do STF ou como mera resposta
revanchista que busca mitigar o papel do STF na interpretação da Constituição
e, neste caso, ela se apresenta como uma proposta não apenas injustificada, mas
também demagógica.
Portanto, o
que queremos sublinhar e defender nesta brevíssima análise é a possibilidade da
PEC 33 ser compreendida como uma tentativa de se estabelecer um verdadeiro
diálogo institucional entre os poderes, bem como, de devolver ao povo a decisão
final sobre o significado da Constituição quando não houver entendimento entre
o judiciário e o legislativo sobre uma determinada controvérsia constitucional.
Ao contrário das leituras precipitadas e levianas que mencionamos no início, as
quais endeusam o judiciário e demonizam o legislativo (ou vice-e-versa),
entendemos que um tal arranjo pode servir para melhorar não só as relações
entre os poderes, mas também no interior dos próprios poderes e, sobretudo,
responder a pergunta que fizemos inicialmente sobre quem e o que deve se
beneficiar com a separação de poderes, isto é, o povo e, consequentemente, a
concretização de seus direitos fundamentais.
Isso porque a
PEC 33 reafirma para o STF a soberania popular, para que ele, igualmente,
reflita sobre sua própria forma de existir e atuar e, assim, reveja os
mecanismos de participação popular direta lá existentes, bem como as
possibilidade de controle popular sobre ele. Se esse é o sentido da PEC,
o mesmo vale para o Congresso Nacional, o qual se acomoda nas eleições como se
estas fossem suficientes para realizar o compromisso democrático deliberativo.
Como se
sabe, hoje o povo não conta com nenhum incentivo participativo e ainda possui
parcos e dificílimos instrumentos de participação e controle populares no
âmbito do legislativo e, sobretudo, do judiciário.
A PEC 33
prevê que a participação popular se dê por consulta popular, a qual, em geral, é
realizada por meio de plebiscito. No entanto, é preciso ressalvar que o
plebiscito a ser realizado deve oportunizar um debate coletivo, nacional, entre
os cidadãos, para que a resposta a ser dada pelo povo seja fruto de uma
discussão, deliberação, ampla, pública, robusta e não a mera constatação de
posições individuais. O último plebiscito que o país enfrentou em 2005 sobre o
desarmamento revelou justamente o contrário do que um regime democrático e
deliberativo sustenta, isto é, a ausência de um debate público robusto entre os
cidadãos brasileiros em torno das questões que lhes afetam, de forma que
todos efetivamente façam parte do processo decisório.
Dessa forma,
a PEC 33 pode representar muito mais do que uma mera reação vingativa do Poder
Legislativo contra o Poder Judiciário. Ela pode inaugurar esse debate ausente
sobre como se deve encarar a separação entre os poderes no Brasil, sobre as
formas de atuação e interação dos poderes no exercício de suas funções e
competências, especialmente sobre a interpretação e significado da
Constituição. A PEC 33, pode, portanto, ser a primeira possibilidade de
se repensar que arranjo institucional é desejável e factível, bem como inaugurar
a criação de incentivos e instrumentos à participação direta do povo, à
intervenção do povo nos assuntos que mais lhe dizem respeito. A PEC 33 poder
ser a porta de entrada para uma rediscussão sobre as formas de existência e
atuação das nossas instituições democráticas – especialmente o Congresso
Nacional, o Poder Judiciário e a interação entre eles. O plebiscito proposto,
se feito após um prévio, robusto e deliberativo debate público, pode ser uma
boa ferramenta para apresentação de opiniões, pontos de vista, transformação de
preferências e, assim, aferir a vontade do povo. Mais, a PEC 33 pode abrir
inúmeros caminhos, alternativas, possibilidades e desenhos institucionais ainda
não apresentados ou pensados.
Miguel e Vera, parabéns pelo texto. Mas ainda tenho uma preocupação com esta PEC. Usando o caso da pesquisa sobre redução da maioridade penal feita na cidade de São Paulo, em que a população aprovaria a redução da maioridade numa porcentagem absurda de mais de 90% dos entrevistados, percebo que a população brasileira acaba se mostrando mais conservadora e reacionária (se é que posso usar estes termos, mas tenho dificuldade em encontrar outro que os caracterize) do que o próprio legislativo; e tendo uma pequena impressão de que o judiciário está à frente de uma marcha mais progressista, não poderíamos temer que o controle da constitucionalidade pelo povo seria um "tiro no pé" em temas de direitos humanos e minorias, por exemplo?
ResponderExcluirParabéns pelo texto claro,preciso e objetivo! Venho trilhando este mesmo entendimento. Não defendendo a aprovação, mas justamente louvando o debate aberto de como harmonizar poderes, tendo em conta a sobrerania e a democracia.
ResponderExcluirParabéns pelo texto! A questão que deixo aqui e que é minha maior preocupação é justamente se o nosso país, tendo como maioria da população pessoas desinformadas, desinteressadas politicamente e que dão seus votos, ainda, de acordo com seus possíveis interesses, sem pensar necessariamente no melhor para o país, teria capacidade de decidir o melhor para todos ou se daríamos, com isso, mais um tiro no pé...Fica a questão...
ResponderExcluirAlguns pontos não citados no texto, muito bem redigido por sinal, não tem relação direta com os termos e a atuação técnica do tema, uma delas é o próprio voto obrigatório, que limita a qualidade do eleitor, transformando-o em leigo, desprovido de opinião "técnica", ou do conhecimento mais simples da função incumbida a cada poder. Antes mesmo de sabermos a função de cada poder precisamos entender o conceito de Nação, Estado e País, assim descobrindo quem é quem e qual sua "importância" no conjunto democrático. Caso contrário esta PEC 33 vai simplesmente beneficiar (ou não) um determinado poder, e ajuda-lo a ter mais independência facilitando um corporativismo, e consequentemente facilitando legislar em causa própria, como temos visto na atuação do congresso e do senado, bem como não podemos permitir que, sozinho, o STF diga se é ou não é constitucional inibindo o debate. Apesar de , na minha opinião, nossa constituição é um "pai bonzinho" que transforma a lei em um amontoado de palavras vazias e sem função, ao mesmo tempo se transforma numa ditadura quanto ao desejo popular, também inibido de debater seus desejos como visto na defesa ou não da maior ou menor idade penal. Estamos longe de uma democracia...
ResponderExcluirUma correção: em 2005, houve referendo. Não confundir plebiscito com referendo.
ResponderExcluirMeu questionamento é no seguinte sentido: A guarda da constituição, sendo função delegada ao STF pela constituição de 88 e ao ser restrita a atuação daquele orgão, no caso especifico desta PEC quem verificaria a constitucionalidade deste dispositivo? E por mais louvavel que seja atribuir em ultima instancia ao povo, não estaria sendo usado o meio incorreto para a implantação deste dispositivo, tal alteração não demandaria atuação do poder constituinte? Isto sem entrar no mérito da mecânica e logística necessaria a cada decisão popular.
ResponderExcluirE como ultimo ponto para reflexão, não ficaríamos reféns do Legislativo? Na forma como foi proposto caberia ao povo opinar apenas no caso de divergência entre o Legislativo e o Judiciário, entretanto ao limitar a eficácia da sumula vinculante o valido até que se conclua o processo hora proposto seria o promulgado pelo legislativo, no caso de matéria de seu interesse não seria apenas necessário que o mesmo sentasse sobre a matéria sem nunca permitir efetiva consulta popular?
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