quinta-feira, 2 de maio de 2013

Quem detém a última palavra sobre o significado da Constituição: a PEC 33, seus limites e possibilidades



Aqui vai uma breve análise crítica da PEC 33, exibindo alguns elementos concretos para pensarmos e decidirmos se ela é uma má iniciativa, meramente vingativa, ou uma boa oportunidade para se repensar a separação entre os poderes no Brasil, o arranjo institucional entre Legislativo e Judiciário e, principalmente, o papel do STF na definição do significado da Constituição.




Quem detém a última palavra sobre o significado da Constituição: a PEC 33, seus limites e possibilidades

Miguel Gualano de Godoy é Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e Pesquisador do Núcleo de  Pesquisa Constitucionalismo e Democracia (UFPR).

Vera Karam de Chueiri é Professora de Direito Constitucional (graduação, mestrado e doutorado) e Vice-diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). É Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia (UFPR).

A Proposta de Emenda Constitucional 33 altera a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para a declaração de inconstitucionalidade de leis; condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição. Também estabelece que caso o Congresso Nacional se manifeste contrariamente à decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, a controvérsia seja submetida à consulta popular.

Como encarar essa proposta de emenda à Constituição? Ela é reação vingativa do Poder Legislativo contra o Poder Judiciário ou mera disputa de poder entre os juízes e  legisladores para definir quem tem a última palavra sobre o significado da Constituição? A PEC 33 pode abrir novas possibilidades na forma como se encara a separação entre os poderes e a forma de cada um exercer suas competências e funções? Este breve artigo busca mostrar alguns elementos na construção dessas respostas.

A PEC 33 pode representar a primeira possibilidade de se estabelecer uma reflexão muito mais profunda e também mais profícua sobre a separação entre os poderes e como deve se dar a interação entre eles, especialmente quando essa relação envolve o significado, conteúdo e alcance dos direitos e deveres previstos pela Constituição de 1988.

O modelo de separação entre os poderes adotado pela Constituição de 1988 é um modelo que especifica as funções dos órgãos de Estado (executiva, legislativa e jurisdicional) e, no âmbito de cada órgão, em atenção à estrutura federativa (união, estados-membros e municípios), estabelece uma repartição de competências. O Poder Legislativo tem a função primordial de legislar e fiscalizar o Poder Executivo. Este, por sua vez, possui a função de governar e administrar o Estado, através da fixação de diretrizes políticas, isto é, da elaboração e execução de políticas públicas (em geral, criadas por lei). Ao Poder Judiciário, ao seu turno, cabe a aplicação do direito e, ao Supremo Tribunal Federal, em especial e principalmente, a defesa da Constituição. Não obstante, as funções de governar, administrar, legislar e aplicar o direito sejam especializadas e, assim, se definam a partir de um modelo de separação, elas são interdependentes e devem estar comprometidas com algo mais substancial do que a mera eficiência institucional, isto, é a democracia. Vale aqui a pergunta: o poder se divide em benefício de quem e do que?

Nesse sentido, ao se afirmar que ao Supremo Tribunal Federal (STF) cabe a defesa da Constituição e daí se concluir que só ele, e apenas ele, pode definir qual é o significado da Constituição tem-se uma compreensão limitada, desprovida de justificação, conteúdo e legitimidade. Se é certo que o constituinte definiu no art. 102 da Constituição da República que ao STF cabe a guarda da Constituição, o significado dessa norma não é dado como a leitura mais apressada ou mais ingênua quer fazer crer. Ao contrário, o conteúdo e alcance dessa norma deve ser construído, definido pelo intérprete. Desta forma, o STF ao interpretar esse seu dever previsto pela Constituição estabeleceu que ele, como guardião da Constituição, é quem detém a última palavra sobre a interpretação da Constituição. Vale aqui uma segunda pergunta: Por que razão é o STF o intérprete privilegiado da Constituição e sua palavra, terminal, em relação ao que quer dizer a Constituição?

Há, assim, uma supremacia do órgão judicial (o STF) em relação à interpretação da Constituição. Contudo, do ponto de vista democrático e deliberativo sobram motivos para não naturalizar essa atividade como absoluta e exclusiva do STF, bem como, para criticá-la.  Isto, pois, ela parte da correta separação funcional para chegar na equivocada conclusão substancial de que o sentido da constituição se encerra naquilo que unicamente um colegiado de ministros – de maneira não necessariamente deliberativa – diz que é. Essa postura da supremacia judicial não fomenta uma ação conjunta, coordenada e colaborativa entre os poderes na definição do que é a Constituição e dela resulta uma disputa (e não um diálogo) entre os poderes sobre quem então deve ter a última palavra. Assim,  ao invés dos poderes buscarem de forma dialógica e colaborativa a melhor resposta sobre o significado da Constituição, eles passam a disputá-la, não importando se a resposta será boa ou ruim; se protegerá ou não nossos direitos fundamentais .

É nesse contexto de disputa sobre quem deve ter a última palavra, sobre o significado da Constituição que surge, pois, a PEC 33. Ainda que não seja esta a melhor forma de relação entre o legislativo e o judiciário, pois pressupõe um vencedor e um perdedor (da disputa) sobre o sentido da Constituição, ela deve ser considerada em seus termos. O que não é digno de consideração é o uso da PEC 33 como raivosa reação do Congresso Nacional às atuações do STF ou como mera resposta revanchista que busca mitigar o papel do STF na interpretação da Constituição e, neste caso, ela se apresenta como uma proposta não apenas injustificada, mas também demagógica.

Portanto, o que queremos sublinhar e defender nesta brevíssima análise é a possibilidade da PEC 33 ser compreendida como uma tentativa de se estabelecer um verdadeiro diálogo institucional entre os poderes, bem como, de devolver ao povo a decisão final sobre o significado da Constituição quando não houver entendimento entre o judiciário e o legislativo sobre uma determinada controvérsia constitucional. Ao contrário das leituras precipitadas e levianas que mencionamos no início, as quais endeusam o judiciário e demonizam o legislativo (ou vice-e-versa), entendemos que um tal arranjo pode servir para melhorar não só as relações entre os poderes, mas também no interior dos próprios poderes e, sobretudo, responder a pergunta que fizemos inicialmente sobre quem e o que deve se beneficiar com a separação de poderes, isto é, o povo e, consequentemente, a concretização de seus direitos fundamentais.

Isso porque a PEC 33 reafirma para o STF a soberania popular, para que ele, igualmente, reflita sobre sua própria forma de existir e atuar e, assim, reveja os mecanismos de participação popular direta lá existentes, bem como as possibilidade de  controle popular sobre ele. Se esse é o sentido da PEC, o mesmo vale para o Congresso Nacional, o qual se acomoda nas eleições como se estas fossem suficientes para realizar o compromisso democrático deliberativo.

Como se sabe, hoje o povo não conta com nenhum incentivo participativo e ainda possui parcos e dificílimos instrumentos de participação e controle populares no âmbito do legislativo e, sobretudo, do judiciário.

A PEC 33 prevê que a participação popular se dê por consulta popular, a qual, em geral, é realizada por meio de plebiscito. No entanto, é preciso ressalvar que o plebiscito a ser realizado deve oportunizar um debate coletivo, nacional, entre os cidadãos, para que a resposta a ser dada pelo povo seja fruto de uma discussão, deliberação, ampla, pública, robusta e não a mera constatação de posições individuais. O último plebiscito que o país enfrentou em 2005 sobre o desarmamento revelou justamente o contrário do que um regime democrático e deliberativo sustenta, isto é, a ausência de um debate público robusto entre os cidadãos brasileiros em torno das questões que lhes afetam, de forma que todos efetivamente façam parte do processo decisório.

Dessa forma, a PEC 33 pode representar muito mais do que uma mera reação vingativa do Poder Legislativo contra o Poder Judiciário. Ela pode inaugurar esse debate ausente sobre como se deve encarar a separação entre os poderes no Brasil, sobre as formas de atuação e interação dos poderes no exercício de suas funções e competências, especialmente sobre a interpretação e significado da Constituição.  A PEC 33, pode, portanto, ser a primeira possibilidade de se repensar que arranjo institucional é desejável e factível, bem como inaugurar a criação de incentivos e instrumentos à participação direta do povo, à intervenção do povo nos assuntos que mais lhe dizem respeito. A PEC 33 poder ser a porta de entrada para uma rediscussão sobre as formas de existência e atuação das nossas instituições democráticas – especialmente o Congresso Nacional, o Poder Judiciário e a interação entre eles. O plebiscito proposto, se feito após um prévio, robusto e deliberativo debate público, pode ser uma boa ferramenta para apresentação de opiniões, pontos de vista, transformação de preferências e, assim, aferir a vontade do povo. Mais, a PEC 33 pode abrir inúmeros caminhos, alternativas, possibilidades e desenhos institucionais ainda não apresentados ou pensados.

A forma como os poderes e a sociedade brasileira irão lidar com a PEC 33 – como mera disputa por poder entre o Legislativo e o Judiciário ou como possibilidade de se repensar a forma de atuação e interação entre os poderes – será reveladora do compromisso que ambos tem (ou não) com o seu conteúdo, isto é, com a realização de um constitucionalismo e de uma democracia genuínos.

7 comentários:

  1. Miguel e Vera, parabéns pelo texto. Mas ainda tenho uma preocupação com esta PEC. Usando o caso da pesquisa sobre redução da maioridade penal feita na cidade de São Paulo, em que a população aprovaria a redução da maioridade numa porcentagem absurda de mais de 90% dos entrevistados, percebo que a população brasileira acaba se mostrando mais conservadora e reacionária (se é que posso usar estes termos, mas tenho dificuldade em encontrar outro que os caracterize) do que o próprio legislativo; e tendo uma pequena impressão de que o judiciário está à frente de uma marcha mais progressista, não poderíamos temer que o controle da constitucionalidade pelo povo seria um "tiro no pé" em temas de direitos humanos e minorias, por exemplo?

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  2. Parabéns pelo texto claro,preciso e objetivo! Venho trilhando este mesmo entendimento. Não defendendo a aprovação, mas justamente louvando o debate aberto de como harmonizar poderes, tendo em conta a sobrerania e a democracia.

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  3. Parabéns pelo texto! A questão que deixo aqui e que é minha maior preocupação é justamente se o nosso país, tendo como maioria da população pessoas desinformadas, desinteressadas politicamente e que dão seus votos, ainda, de acordo com seus possíveis interesses, sem pensar necessariamente no melhor para o país, teria capacidade de decidir o melhor para todos ou se daríamos, com isso, mais um tiro no pé...Fica a questão...

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  4. Alguns pontos não citados no texto, muito bem redigido por sinal, não tem relação direta com os termos e a atuação técnica do tema, uma delas é o próprio voto obrigatório, que limita a qualidade do eleitor, transformando-o em leigo, desprovido de opinião "técnica", ou do conhecimento mais simples da função incumbida a cada poder. Antes mesmo de sabermos a função de cada poder precisamos entender o conceito de Nação, Estado e País, assim descobrindo quem é quem e qual sua "importância" no conjunto democrático. Caso contrário esta PEC 33 vai simplesmente beneficiar (ou não) um determinado poder, e ajuda-lo a ter mais independência facilitando um corporativismo, e consequentemente facilitando legislar em causa própria, como temos visto na atuação do congresso e do senado, bem como não podemos permitir que, sozinho, o STF diga se é ou não é constitucional inibindo o debate. Apesar de , na minha opinião, nossa constituição é um "pai bonzinho" que transforma a lei em um amontoado de palavras vazias e sem função, ao mesmo tempo se transforma numa ditadura quanto ao desejo popular, também inibido de debater seus desejos como visto na defesa ou não da maior ou menor idade penal. Estamos longe de uma democracia...

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  5. Uma correção: em 2005, houve referendo. Não confundir plebiscito com referendo.

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  6. Meu questionamento é no seguinte sentido: A guarda da constituição, sendo função delegada ao STF pela constituição de 88 e ao ser restrita a atuação daquele orgão, no caso especifico desta PEC quem verificaria a constitucionalidade deste dispositivo? E por mais louvavel que seja atribuir em ultima instancia ao povo, não estaria sendo usado o meio incorreto para a implantação deste dispositivo, tal alteração não demandaria atuação do poder constituinte? Isto sem entrar no mérito da mecânica e logística necessaria a cada decisão popular.

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  7. E como ultimo ponto para reflexão, não ficaríamos reféns do Legislativo? Na forma como foi proposto caberia ao povo opinar apenas no caso de divergência entre o Legislativo e o Judiciário, entretanto ao limitar a eficácia da sumula vinculante o valido até que se conclua o processo hora proposto seria o promulgado pelo legislativo, no caso de matéria de seu interesse não seria apenas necessário que o mesmo sentasse sobre a matéria sem nunca permitir efetiva consulta popular?

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