sábado, 4 de maio de 2013

PEC 33 - Paulo R. Schier


Ainda no calor dos debates sobre a PEC 33, a partir do artigo escrito com a Prof. Vera Karam de Chueiri, o Prof. Paulo Schier escrever um artigo muito interessante chamando atenção para outros aspectos relativos à referida PEC, especialmente as razões pelas quais ela foi proposta.






"Para mim o problema da PEC 33 está mais vinculado com a questão da democracia e do Estado de Direito em sua dimensão procedimental. 
Em primeiro lugar, a proposta até pode ser adequada no mérito. Mas o que a deflagrou não possui legitimidade. A causa importa neste caso. A proposta pode ser boa, mas a origem possui mesmo um vício de revanchismo, de golpe, que são incompatíveis com o Estado de Direito."

PEC 33, STF E CONSULTA POPULAR: A INVERSÃO DAS REGRAS DO JOGO DEMOCRÁTICO

Demorei para me manifestar sobre a PEC 33. Já debati sobre o tema, mas precisava de tempo para uma reflexão mais apurada.
A Professora Vera Karam de Chueiri e Miguel Godoy publicaram manifestação sobre a PEC 33 bastante interessante. A tese central dos autores propõe que referida PEC é, no mínimo, uma possibilidade de repensarmos ou discutirmos o arranjo e formas de diálogo institucional no Brasil. Concordo plenamente. Eu nunca defendi que o Supremo Tribunal Federal e o Judiciário, em conjunto, são os únicos e exclusivos guardiões da Constituição. Não são. Aliás, tenho criticado muito a omissão dos demais Poderes em relação a determinadas decisões do STF. Estou certo de que falta, muitas vezes, a devida reação do Legislativo e do Executivo aos entendimentos do Supremo. Igualmente, diante de decisões extremamente polêmicas, também a sociedade civil tem restado inerte, o que é lastimável.
Portanto, o texto de Vera e Miguel é corretíssimo quando propõe superarmos a leitura da PEC apenas como retaliação mesquinha ao julgamento do mensalão. Embora seja também isso - o que é muito grave, como vou demonstrar a seguir -, devemos aceitar a provocação da PEC para pensar.
Em recente discussão sobre tema eu me posicionei de forma contrária à PEC 33 - e mantenho minha opinião. Contudo o grande problema não está na violação da separação dos poderes. A separação dos poderes não é um instrumento estático. Não se trata de um dogma. Ele se adapta conforme a realidade social, política e histórica na qual se insere. Qualquer aluno mediano sabe que o sentido de separação dos poderes em França é muito diverso daquele que foi desenvolvido e adotado nos Estados Unidos da América. O próprio Brasil apresentou, no decorrer de sua história, arranjos diferentes neste setor. Tradições mudam. Arranjos institucionais consolidados, que são adequados e funcionam bem em determinados momentos, podem não ser adequados em outros momentos históricos.
É certo que separação dos poderes é cláusula pétrea. Mas é certo também que, assim como ocorre em relação aos direitos fundamentais, esta proteção alcança apenas o núcleo essencial do instituto. Isso vale para todas as cláusulas pétreas. Se não fosse assim, não teria sentido algum discutir revisão do pacto federativo com redistribuição ou revisão da repartição de competências e de receitas tributárias. Qualquer alteração nesta sede seria inconstitucional.
Para mim o problema da PEC 33 está mais vinculado com a questão da democracia e do Estado de Direito em sua dimensão procedimental.
Em primeiro lugar, a proposta até pode ser adequada no mérito. Mas o que a deflagrou não possui legitimidade. A causa importa neste caso. A proposta pode ser boa, mas a origem possui mesmo um vício de revanchismo, de golpe, que são incompatíveis com o Estado de Direito. Tal como uma Emenda materialmente constitucional mas proposta por autoridade incompetente é inconstitucional por vício de origem, também por mais que uma emenda qualquer no mérito possa ser boa, sendo a causa que a deflagrou golpista ou revanchista não haverá legitimidade. Então aceitemos a proposta da PEC para a reflexão sobre a separação dos poderes, a necessidade de incrementar os diálogos institucionais, a necessidade de buscar uma efetiva democracia deliberativa... Mas apenas para isso. Do contrário seria o mesmo que aceitar que um ataque terrorista possa ser bom para a democracia por causa da reação que deflagra. Para mim, trata-se de violação ao Estado de Direito.
Todavia, o que me assusta na citada PEC é a questão da consulta popular. Parece tratar-se de tese democrática; só que não - como dizem os adolescentes de hoje. O artigo indicado para leitura reconhece, com toda razão, que nem sempre as decisões do STF são tomadas de maneira deliberativa. E também, acrescento, os regimentos internos do nosso Parlamento igualmente não facilitam decisões deliberativas. Lá e aqui ainda estamos primordialmente numa democracia majoritária. Ainda aprovamos lei por voto de liderança, ou mediante delegação "interna corporis" e assim por diante. Leis, no Brasil, podem ser aprovadas com 17 votos (numa Comissão com 35 parlamentares). Questões extremamente relevantes para uma decisão que seja efetivamente deliberativa no parlamento muitas vezes não são controladas pelo STF por se tratarem de "mera questão interna corporis". O mesmo ocorre no âmbito do STF. Não são poucos que sustentam que grande parte das decisões não são deliberativas, mas apenas majoritárias. Normalmente não conseguimos saber a "ratio decidendi" o STF. É praticamente impossível afirmar que este ou aquele é o entendimento do STF. Simplesmente toma-se a maioria dos votos e está decidido. Por quais razões? Fica sempre um certo mistério se o determinante foi o voto poético de um ministro, o argumento técnico de outro, as razões políticas ou alguma observação secundária. A maioria decidiu. Por "qual razão", isso parece não importar muito.
Assim, sem efetiva democracia deliberativa, a proposta de consulta popular da PEC 33 poderá se transformar em mero campo de disputas dos meios de comunicação e daqueles que possuem fácil acesso aos canais de debate.
Por isso eu concordaria plenamente com as teses do artigo da Professora Vera e do Miguel se a ressalva feita no texto, e que é pressuposto de tudo o que os autores defendem, fosse factível. Dizem os autores:

"No entanto, é preciso ressalvar que o plebiscito a ser realizado deve oportunizar um debate coletivo, nacional, entre os cidadãos, para que a resposta a ser dada pelo povo seja fruto de uma discussão, deliberação, ampla, pública, robusta e não a mera constatação de posições individuais".

Mas não é isso o que temos, infelizmente. Confio na democracia. Confio no povo. Confio na soberania popular, fundamento de nosso Estado Democrático de Direito. Mas, neste caso, é preciso salientar: a soberania popular não reside exclusivamente no parlamento, no Executivo e tampouco no Judiciário. Referidas instituições também são manifestações da soberania popular. No Estado de Direito a soberania é da Constituição e de seus valores. Quando falamos em "constitucionalismo" o Judiciário assume o papel, exatamente, de ser o guardião de determinados valores. No constitucionalismo as decisões não devem prevalecer apenas por ser vontade da maioria. Rousseau já havia demonstrado isso na sua versão do contratualismo. Marshall também ajuda a fundar a ideia de uma soberania constitucional não apenas majoritária. A soberania, logo, é vinculada sim a princípios. E o papel do Judiciário é o de ser o guardião deles. Por certo não é o único responsável por essa tarefa e nem tampouco detém o monopólio sobre a "verdade constitucional" (a expressão aqui é forte e é para ser irônica). Mas no constitucionalismo, para seguir a célebre expressão de Dworkin, é ao Judiciário que cabe o papel de fazer valer determinados direitos como trunfos contra a maioria. Exatamente porque "a maioria não pode tudo".
Então, numa hipótese de conflito institucional entre o Judiciário e o Parlamento, devolver a decisão para que o povo decida diretamente, pela maioria, é o mesmo que retirar o sentido de existência do Judiciário e da proteção dos direitos fundamentais. Se eles existem como "trunfos contra a maioria", não pode a maioria ter competência para rever algumas decisões.
Além disso o instituto da consulta popular pode fazer subverter qualquer racionalidade jurídica das decisões judiciais na medida em que, na prática, o STF terá que considerar, em seus julgados, os prognósticos sobre a opinião pública, tentando antecipar como seu posicionamento será aceito no futuro.
Por fim, não sejamos ingênuos! A ideia de consulta popular deverá servir para o bem e para o mal. Talvez ela ocorra quando o STF julgar questões polêmicas no campo da interpretação dos direitos fundamentais, como no caso da união estável e casamento homoafetivo, dentre tantos outros que poderiam ser citados. Talvez... Mas certamente haverá o conflito institucional e a consequente consulta popular em relação a questões que envolvam grandes grupos e interesses econômicos, em relação à intervenção do estado na economia, regulação etc. E aqui esses grupos e interesses são fortes e possuem maior acesso à grande mídia. Ganham, muito facilmente, um pleito plebiscitário, com o voto da maioria. Então vamos recorrer a quem? Aos seus concorrentes no mercado?
Certa vez ouvi a afirmação de que "quem gosta e defende a democracia não tem medo do povo". Eu gosto mais é de afirmar que vontade do povo não é vontade da maioria. Que soberania popular não é soberania do Parlamento ou de vontades majoritárias eventuais. Eu ainda continuo preferindo afirmar que a minoria também é povo, e que num estado democrático plural as minorias devem ser respeitadas. Eu prefiro defender que o grande papel do Judiciário é fazer valer os direitos fundamentais exatamente como trunfos contra as maiorias eventuais e sazonais.
Mas, claro, isso tudo não significa que não devamos aprimorar diálogos institucionais e, ainda, que precisamos reconhecer que na lógica da separação de funções o chamado "conflito entre poderes" seja algo natural e salutar (mas isso não é nenhuma novidade!).


PAULO RICARDO SCHIER

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