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“Diálogo institucional” ou “business as usual”?
STF, seletividade decisória, interesses econômicos e a copa do mundo da FIFA
Gilberto Guerra Pedrosa (Mestrando em direito na UnB) e
Pablo Holmes (mestre em direito pela UFPE e doutor em sociologia
pela Universidade de Flensburg, Professor de Teoria Política na UnB)
Na primeira semana de maio, o Supremo Tribunal Federal decidiu acerca dos questionamentos feitos à constitucionalidade da Lei Geral da Copa pelo Procurador Geral da República na ADI 4976. Em sua decisão, o STF salientou a importância do consenso institucional entre os poderes da república (Executivo, Legislativo e Judiciário) acerca de matérias políticas controversas como um dos parâmetros de julgamento da constitucionalidade e, ao final, decidiu a favor da constitucionalidade dos dispositivos legais.
Segundo entendemos, revela-se nessa decisão a emergência de um discurso constitucional inspirado na ideia de que o arranjo de poderes deve funcionar na forma de um “diálogo institucional” entre os atores constitucionalmente relevantes, em nome da preservação e alargamento do regime democrático.[1]
Como costuma acontecer entre nós, discursos constitucionais da moda podem servir menos para aperfeiçoar os mecanismos da jurisdição constitucional e mais para legitimar interesses particularistas. Observando o caso da ADI 4976, a sensação clara é a de que o suposto “diálogo consensual” entre os poderes, usado na argumentação da corte para justificar o julgamento, serviu, na verdade, para legitimar uma submissão nada “democrática” das instituições de direito público do ordenamento jurídico brasileiro aos interesses econômicos da FIFA, suas subsidiárias e daqueles que sempre costumam ser beneficiados em um país tão desigual e excludente como o Brasil.
A FIFA como ator institucional?
Os interesses econômicos da Fifa, uma pessoa jurídica de direito privado constituída originalmente na Suiça, estão sensivelmente relacionados à decisão na ADI de nº 4.976. Ao contrário do que pode parecer, desde o ponto de vista constitucional, tratou-se na ação não apenas da constitucionalidade de normas internas da ordem jurídica brasileira, mas da relação entre nossa ordem constitucional a e os objetivos, sobretudo econômicos, da FIFA, uma superorganização transnacional com poder para pressionar e constranger Estados nacionais.
Claro que a copa tem uma conexão direta com a identidade nacional e será um megaevento capaz de divertir e alegrar a população. Ademais, ela pode ter uma dimensão política que transcende o simples entretenimento, significando uma projeção simbólica das potencialidades culturais, econômicas e sociais brasileiras para o mundo: uma expressão do soft power brasileiro fundado na diversidade étnica e cultural, no espírito de cordialidade e alegria nacionais. Longe de representarem apenas clichés, a imagem política de um país pode se traduzir de maneira concreta na geopolítica das nações, inclusive com possíveis ganhos econômicos traduzíveis em investimentos.
E, de fato, os argumentos econômicos se tornaram os mais importantes a justificar tudo que diz respeito à Copa do Mundo do Brasil de 2014. Para o bem, mas sobretudo para o mal.
Segundo a Consultoria Ernst Young, em estudo feito em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, as olimpíadas e a copa do mundo juntas gerariam mais de 6 milhões de empregos diretos e indiretos entre 2010 e 2014. Apenas a copa do mundo significaria investimentos da ordem de 142 bilhões de reais, acrescentando 63,8 bilhões à renda nacional. E segundo estimativas do governo central, ela renderia um incremento de até 10 bilhões na arrecadação tributária, nos diversos níveis federativos.
Bom para a economia? Melhor ainda para a FIFA. Já em 2013, a federação bateu todos os seus recordes anteriores de arrecadação devido à organização do torneio. Segundo o secretário-geral da entidade, Jérome Valcke a previsão de faturamento da Fifa com a copa realizada no Brasil é de US$ 4 bilhões só em receita comercial. Ela seria, assim, a competição mais rentável da história, gerando para a FIFA U$S 1,7 bilhões a mais que a copa realizada na África do Sul de 2010.
Os números bilionários se tornam tão poderosos que eles eliminam quaisquer preocupações com os efeitos destrutivos que os imperativos econômicos podem ter sobre as instituições jurídicas e políticas. Presume-se que tudo que gere crescimento, e lucros, é necessariamente benéfico para o conjunto da sociedade, não importando a que custo as cifras sejam produzidas: seja o desrespeito a direitos individuais e coletivos e a procedimentos democráticos ou a produção de instabilidades institucionais por meio de um verdadeiro regime jurídico de exceção para satisfazer os interesses de uma entidade privada.
Os incontáveis relatos de violações de direitos de populações locais graças aos esforços monumentais para a realização do evento são diversos. Eles vão desde a remoção forçada ou por meio de pífias indenizações a moradores do entorno de áreas a serem utilizadas de alguma forma para o torneio, até a repressão violenta de manifestações contra a competição. Várias violações foram objeto de denúnciafeita por organizações não-governamentais e pela relatoria da ONU para o direito à moradia durante a 23° reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Os custos que talvez sejam mais difíceis de mensurar dizem respeito, porém, ao próprio funcionamento das instituições. Como condição para a realização da Copa do Mundo no país, a FIFA impôs ao Estado brasileiro uma série de constrangimentos, muitos deles completamente antagônicos ao funcionamento normal das estruturas políticas e jurídicas nacionais. Essas condições de exceção se materializaram nos diversos marcos legais da copa, que criaram uma verdadeira ordem jurídica paralela a regular a preparação e a realização do evento, assim como o regime de responsabilização por quaisquer danos ou violações que pudessem ser imputadas a FIFA durante e após o torneio.
Por isso, a ADI 4976 não tratava apenas da regulação recíproca entre os poderes da República Brasileira. Ela dizia respeito a uma tensão mais profunda entre racionalidades sociais distintas. Uma disputa entre os imperativos econômicos, representados pelas pretensões de eficiência na organização do evento impostas pela FIFA e materializadas em seu regime jurídico de exceção, e entre os imperativos democráticos da ordem constitucional. Dar nomes aos bois é muitas vezes importante, para que possamos saber como caminha a boiada. E, no caso dessa triste decisão do tribunal, parece que a boiada marchou firmemente para pisar questões constitucionais fundamentais em nome de vantagens econômicas cujo significado pode nem sempre ser exatamente proveitoso para o conjunto da população.
A economia contra a democracia: a FIFA e o regime jurídico de exceção da copa
A realização da Copa do Mundo de 2014 criou, desde o ponto de vista institucional, uma verdadeira ordem de exceção exceção em relação à ordem constitucional brasileira, com repercussões nas mais diversas esferas de direitos.
No Congresso Nacional, o pedido de urgência foi cumprido com êxito para dar maior celeridade e garantir a aprovação de todas as exigências legislativas estabelecidas pela FIFA. A Lei 12.350/10dispunha sobre diversas isenções tributárias (IRPJ, PIS, COFINS, IPI, IOF etc) concedidas à entidade, as quais atingiriam quase R$ 560 milhões, e um regime diferenciado de tributação para empresas envolvidas nas reformas e construções de estádios de futebol. A Lei 12.462/11 estabeleceu um regime excepcional de licitações e contratos para obras e serviços ligados a copa das confederações, copa do mundo e jogos olímpicos. E a Lei 12.663/12, a “Lei geral da Copa”, que transformou a FIFA em um entidade jurídica praticamente soberana, com poderes e prerrogativas que a colocam acima da constituição federal.
A copa da Fifa também estimulou de forma inusitada ações do Executivo e do Judiciário.
Em outubro de 2013, a súmula 502 do STJ afastou qualquer possibilidade de entendimento capaz de flexibilizar o tipo penal de crime autoral, adequando-o perfeitamente aos tipos estabelecidos pela Lei Geral da Copa (Capítulo VIII) para a proteção de direitos autorais da Fifa. Desse modo, ficava estabelecido que os direitos de propriedade intelectual da FIFA se distinguem dos direitos de propriedade de quaisquer outros cidadãos ou empresas, nos termos da Lei 9.610/98 (por sinal já resultada de imposição graças às negociações da OMC). E, em dezembro de 2013, a portaria normativa de nº 3.461 do Ministério da Defesa denominada “Garantia da Lei e da Ordem”, estabeleceu um regime excepcional para o “controle e distúrbio do ambiente urbano”.
A agilidade como esses mecanismos foram aprovados no congresso e incorporados em diversos planos institucionais só não é mais surpreendente que a forma acrítica como as mais absurdas exceções foram incluídas no ordenamento jurídico de modo a dar um status especial à FIFA. O Estado brasileiro parece ter se comportado, nesse processo, menos como uma organização democrática, em que procedimentos deliberativos são fundados na igualdade jurídica e política e mais como um sócio-investidor, numa busca interessada sem limites por otimizar os interesses econômicos de seus parceiros econômicos numa empresa lucrativa.
Os conflitos entre os imperativos econômicos de eficiência e lucratividade com as estruturas democráticas de deliberação e os mecanismos constitucionais de regulação jurídica parecem ser, aliás, algo que acompanha a realização desses megaeventos esportivos por organizações transnacionais privadas.
A dificuldade de conciliar a “eficiência” organizacional com os constrangimentos institucionais de um Estado de Democrático de Direito foram, aliás, objeto de já famosos comentários de dirigentes da FIFA. O secretário-geral da entidade, Jérôme Valcke, afirmou, por exemplo, ser mais fácil organizar copas do mundo em países com menos democracia. E ao fazer uma comparação entre Rússia e Alemanha, ele afirmou que “quando você tem um chefe de estado forte, que pode decidir, assim como Putin poderá ser em 2018, é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha, onde você precisa negociar em diferentes níveis”.
O que, num primeiro momento, pode parecer uma ode (conhecida entre nós) à eficiência do mercado, em detrimento das implicações um tanto “populistas” da democracia, se desfaz quando consideramos quais as exigências feitas pela FIFA, e materializadas no regime jurídico de exceção da Copa, e como essas exigências rompem com os fundamentos da igualdade jurídica do nosso ordenamento constitucional. Como sempre, a ideia de que a eficiência do mercado redime a sociedade de quaisquer considerações políticas sobre a distribuição dos recursos e sobre os limites jurídicos dos ganhos frente aos direitos individuais e coletivos de terceiros parece ter um e único motivo: o benefício particularista de interesses, tornados invisíveis.
Diversas entidades não-governamentais e internacionais tem alertado, exatamente, que a distribuição dos benefícios trazidos pelo evento parece se dar de modo tão desigual, que restam duvidosos se seus resultados podem ser vantajosos para o conjunto da sociedade. O Observatório das Metrópoles além de vários pesquisadores em diversas cidades sede tem denunciado a forma violenta e muitas vezes ilegal como moradores tem sido removidos para a realização das obras da copa. E diversos urbanistas tem chamado a atenção para os possíveis impactos nocivos trazidos às cidades pelo torneio.
Outras cidades e Estados do mundo já vem percebendo claramente que as mega-cifras relacionadas aos megaeventos não são nenhuma garantia de que eles representem um retorno social digno de ser comparado aos transtornos e constrangimentos à ordem democrática local. No início deste ano, a cidade de Estocolmo declinou de sua candidatura para sediar as olimpíadas de inverno. E um dos políticos locais justificou assim a desistência: “Quando se trata de custos deste calibre [3,6 bilhões de reais], os cidadãos que pagam impostos exigem de seus políticos mais do que previsões otimistas e boas intuições [argumentação do Comitê Olímpico sueco]. Não é possível conciliar um projeto de sediar os Jogos Olímpicos com as prioridades de Estocolmo em termos de habitação, desenvolvimento e providência social”.
É verdade que a copa pode trazer benefícios. Mas a única forma de fazer com que esses benefícios possam justificar os tremendos esforços do poder público é insistir na garantia de que a realização dos eventos se adeque ao ordenamento jurídico, sem que sejam realizadas violações aos princípios fundamentais da ordem constitucional democrática.
A ADI 5976 e a decisão do Supremo Tribunal Federal
A Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 4976, cujo relator foi o min. Ricardo Lewandowski, questionava entre outras coisas, a responsabilização objetiva da união por quaisquer prejuízos causados pela FIFA a terceiros e em casos fortuitos, durante a realização da Copa; o pagamento de prêmios e auxílios mensais a jogadores das seleções brasileiras campeãs em copas passadas e a isenção, oferecida às custas da união, à Fifa e suas subsidiárias do pagamento de quaisquer taxas e custas judiciais.
A ação questionava, assim, a constitucionalidade de apenas alguns dos diversos dispositivos que estabeleceram o regime jurídico de exceção da copa, e que garantiam à FIFA uma série de prerrogativas completamente excepcionais.
O STF decidiu, com o único voto contrário do Min. Joaquim Barbosa, que todos esses dispositivos eram constitucionais. E, para justificar a decisão, recorreu a uma interessante argumentação, que parece ter feito uso de nova moda teórica no discurso constitucional brasileiro.
Em seu voto, o min. relator Lewandowski ressaltou que a isenção concedida à Fifa e suas subsidiárias quanto às custas e despesas judiciais não contrariam o princípio da igualdade presente na Constituição, que se manifesta no princípio da isonomia tributária. Para ele, a própria CF prevê a possibilidade de isenções fiscais, em seu § 2º, art. 150 da Constituição Federal. Para ele, mais importante seria o efeito político-econômico do evento, dotado “de inegável potencial de gerar empregos e atrair investimentos”, que configuraria “um interesse constitucionalmente relevante”.
Em relação à responsabilização objetiva da união por possíveis danos causados pela FIFA ou suas subsidiárias a terceiros, o ministro alegou que o art. 37 da CF não esgota o tema da responsabilidade objetiva, visto que há outras previsões legais, como no caso de acidentes nucleares, em que se aplicaria a teoria da responsabilidade objetiva integral, sem ser necessária a verificação de nexos de causalidade entre uma ação e o dano.
De modo geral, a justificativa dos ministros, seguindo a posição do relator, variou entre um extremo pragmatismo consequencialista acerca dos supostos benefícios econômicos da copa e uma consideração acerca de um suposto consenso político institucional, dos poderes da República, acerca do “pacto” firmado entre o Estado brasileiro e a FIFA em torno da realização do torneio.
O ministro Barroso, por exemplo, argumentou, a contrario sensu de suas posições mais ativistas em outras ocasiões, que a Lei Geral da Copa teria sido “aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo chefe do Poder Executivo”, não sendo cabível ao supremo intervir sobre os juízos de “conveniência e oportunidade tomadas pelos agentes públicos eleitos”. Direção que foi acompanhada por diversos outros ministros.
O subtexto da argumentação de diversos ministros acentuava, em suma, a interessante suposição de que a convergência entre os poderes executivo, legislativo e mesmo o judiciário, pareciam “conspirar” a favor da constitucionalidade dos dispositivos do regime jurídico criado para a realização da copa. O Brasil teria, nas palavras do Ministro relator, assumido “livre e soberanamente” compromissos à época de sua candidatura, algo que deveria agora ser respeitado pela Corte no seu juízo sobre a constitucionalidade da Lei 12.663/12.
Desse modo, o STF se exime de controlar a constitucionalidade do regime jurídico da copa à luz dos princípios constitucionais da igualdade jurídica, e das regras constitucionais que dificilmente autorizariam as diversas exceções criadas em favor da FIFA. Os argumentos para isso são reduzidos à consideração da força inquestionável dos imperativos econômicos e dos imperativos políticos que não necessariamente se coadunam com as estruturas jurídicas que possibilitam qualquer democracia. Como se a própria economia, para seu funcionamento razoável, não exigisse mecanismos de certeza jurídica baseados em alguma autônoma do sistema jurídico em relação a interesses particularistas tanto econômicos quanto políticos.
Alterar o regime de propriedade, o regime tributário, o regime de responsabilidade civil e o regime penal do país em benefício de uma empresa privada dificilmente resistiria a qualquer teste básico de consideração constitucional à luz das exigências de igualdade jurídica frente a outros atores privados ou mesmo atores públicos. A verdade é que o regime jurídico de exceção da copa estabelece restrições a direitos de terceiros e garante privilégios particularistas a uma entidade privada que seriam vedados até mesmo ao Estado brasileiro. E, ao fazê-lo, introduz uma série de restrições de direitos que são igualmente essenciais à estabilidade democrática e econômica que depende de uma autonomia mínima do sistema jurídico.
Diálogos institucionais ou auto-contensão? A copa como (big) “business as usual”
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem sido objeto de intensos debates públicos e acadêmicos, de acordo com um diagnóstico muitas vezes pouco preciso acerca de uma “judicialização da política”. A expansão de seus poderes, na esfera do controle concentrado e difuso de constitucionalidade, suscitou, assim, críticas e disputas acerca do seu papel no concerto institucional dos poderes.
De um lado, tem-se feito severas críticas a um exercício expansivo da jurisdição constitucional capaz de limitar o exercício do poder legislativo e executivo, fundados na legitimação eleitoral tão importante em uma democracia. De outro, há críticas relevantes à expansão de um discurso constitucional baseado em uma principiologia vaga e imprecisa, que permitiria um uso ilimitado dos poderes constitucionais do tribunal, muitas vezes de modo contraditório e instável.
Em suma, a crítica seria formulada da seguinte forma: Uma juristocracia limitada apenas por aquilo que o próprio tribunal metodologicamente aceitável, de acordo com certas teorias da moda que servem de mecanismo retórico de justificação, significaria uma ameaça aos mecanismos típicos da democracia moderna, em que o direito deveria se conectar, em última análise, às estruturas políticas fundadas na soberania popular.
De fato, a inflação discursiva da retórica dos princípios parece muitas vezes ser um pretexto para dar conta de uma complexidade social extremamente explosiva, sobretudo num país marcado por estruturas sociais extremamente excludentes e desiguais. Ao recorrer a mecanismos altamente flexíveis na fixação de seus parâmetros decisórios, o tribunal pode muitas vezes legitimar jurisdição constitucional que aquiesce com estruturas particularistas e com a violação de direitos básicos individuais e sociais dos setores mais pobres, excluídos mesmo da população.
As críticas feitas ao STF em relação à expansão de seus poderes e à sua inflação principiologista levaram crescentes conflitos, principalmente com o legislativo. E esses conflitos crescentes parecem ter levado o tribunal, mais recentemente, a uma inflexão, em algumas circunstâncias pontuais, na direção de alguma medida de auto-contensão.
Entrementes, eis que surge mais uma elegante teoria a justificar o comportamento do tribunal, tanto do ponto de vista do exercício expansionista do seu poder, como de seus esforços pontuais em realizar algum tipo (bem circunstancial e seletivo) de autocontrole.
Na bolsa das teorias, emergiu nos últimos anos o diagnóstico, de fato interessante, por parte de teorias neo-institucionalistas de que as relações entre os poderes republicanos não precisam ser vistas a partir de um desenho institucional fixo e conflitivo de competências.
Segundo esse diagnóstico, o comportamento dos poderes em um arranjo democrático não implicaria uma decisão última entre uma democracia popular e uma juristocracia expansionista. Em realidade, os poderes se relacionariam muito mais de acordo com um concerto mais ou menos construtivo de aprendizados recíprocos, baseados em “diálogos institucionais” em que cada parte avança, cede e concede, a depender das dinâmicas temporais de observação recíproca.
Em suma, ninguém teria de fato a última palavra sobre as decisões constitucionais, senão que as dinâmicas institucionais seriam responsáveis por construir consensos políticos que afetariam e vinculariam crescentemente os diversos poderes reciprocamente.
O diagnóstico teórico, em si, parece bastante plausível. Aliás, assim como no caso de outras teorias de metodologia constitucional, o problema não são as construções teóricas mais ou menos complexas que são importadas e incorporadas no discurso da corte. Como sempre, o problema está na transformação dessas teorias em mecanismos retóricos de justificação para a histórica seletividade das instituições do Estado brasileiro, costumeiramente empenhado em proteger interesses particularistas e em detrimento dos direitos fundamentais da maioria pobre e excluída da população.
No caso da copa do mundo da FIFA, o Tribunal visivelmente parece ter se deixado influenciar pela retórica dos diálogos institucionais para conceder ao concerto dos poderes a prerrogativa de ter construído um consenso político institucional em torno do pacto assumido pelo Estado brasileiro para a realização do torneio no país. O STF reconheceu que tanto o legislativo como o executivo (e também setores do judiciário) agiram em concerto para viabilizar o evento, e que não caberia ao tribunal qualquer consideração sobre o mérito dessa decisão, que implicava na série de absurdos jurídicos que levaria ao regime jurídico de exceção da copa.
Ora, as teorias neo-institucionalistas não são, porém, teorias propriamente jurídicas capazes de oferecer parâmetros decisórios para decisões de uma corte constitucional. Com origem no pensamento econômico, essas teorias se tornaram hegemônicas no campo da ciência política e, por meio dessa disciplina, vem sendo incorporada à analise das dinâmicas constitucionais dos poderes. Elas se preocupam muito mais em entender como se dão as interações entre diferentes instituições in the long run do que em oferecer quaisquer parâmetros decisórios.
Mas decisões tem sempre que se submeter a alguns parâmetros. Elas são sempre opções por uma possibilidade que exclui, necessariamente, outras. E seus parâmetros podem ser políticos (o interesse dos partidos, dos grupos sociais, dos indivíduos etc), econômicos (os interesses empresariais e individuais em ganhos monetários), científicos (a comprovação empírica ou a plausibilidade teórica de uma hipótese em detrimento de outra) ou, no caso, jurídicos (as regras e princípios internos a uma ordem jurídica constitucional, no caso de um Estado Democrático de Direito).
Teorias constitucionais podem oferecer mecanismos metodológicos para construir parâmetros decisórios no interior do direito. Mas, a rigor, é o compromisso do tribunal constitucional com a coerência do ordenamento e com as suas próprias decisões, à luz das regras e princípios constitucionais que devem orientar a decisão. A capacidade do sistema jurídico de funcionar, em alguma medida, sem se submeter diretamente aos interesses privados, particularistas, de grupos políticos, de poderes é condição fundamental para o funcionamento de um regime democrático, e também para o funcionamento de outras esferas da vida social, como a própria economia de mercado, que não pode se reproduzir sem segurança jurídica e sem mecanismos que garantam igualdade formal de direitos.
No caso da copa do mundo, ao se eximir de julgar a conveniência e oportunidade das decisões políticas que uniram o Estado brasileiro aos interesses da FIFA, o STF não respeitou, como quis dar a entender, os poderes políticos do parlamento e do executivo.
As exceções absurdas feitas no ordenamento brasileiro em favor da FIFA por meio do regime jurídico de exceção da copa e o estabelecimento de um status supraconstitucional ao “pacto político” em favor da realização da copa poderiam, sim, ser objeto de controle jurídico-constitucional. Assim como poderão ser objeto de algum controle mínimo de constitucionalidade os dispositivos questionados na ADI de nº 5030 relativos às praticamente ilimitadas isenções fiscais concedidas à FIFA pela Lei 12.350/10, cujo relator é o Ministro Dias Toffoli.
Ao se eximir de realizar o controle constitucional jurídico, o tribunal parece ter decidido se redimir das críticas que vem sofrendo. Para tanto, parece não ter se preocupado tanto assim com a coerência do sistema jurídico. Algo que alguma (ou qualquer) teoria sempre pode justificar.
Por outro lado, o tribunal talvez tenha agido de modo coerente com a atávica e conhecida seletividade das instituições brasileiras e sua tendência a favorecer os interesses de grupos econômicos importantes capazes de oferecer benefícios, também seletivos, aos donos do poder: (Big) Business as usual.
[1] Agradecemos a Marcelo Neves pela intuição a respeito do mal uso da teoria dos diálogos institucionais no presente caso.
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