quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O exemplo do Ministro da Corte Constitucional da África do Sul

Na sequência da indicação do Prof. Conrado Hubner Mendes sobre o trabalho comparativo entre as Cortes do Brasil, Índia e África do Sul, fica a lição de uma vida teórica e prática de luta em favor das diferenças. O exemplo do Ministro da Corte Constitucional da África do Sul.

Por Saul Tourinho Leal
11.02.14

“Eu tenho HIV!”, revelou o ministro da Corte Constitucional


Não basta tolerar aquilo que nos agrada. Devemos respeitar o que nos choca, pois esse choque costuma ser sustentado pelo preconceito ou pelo medo do que nos é estranho. Uma cultura forte de respeito à diversidade nos convida à adaptação às diferenças, a respeitá-las, celebrá-las e seguirmos unidos, dentro das nossas distinções.
A África do Sul traz o compromisso com a diversidade no preâmbulo constitucional. O país tem tentado cumprir esse propósito. Nessa trajetória, surge mais uma personalidade cuja história de vida prova até onde a celebração das diferenças deve ir. Falo de Edwin Cameron, aquele para quem “a Constituição inteira está enraizada na noção de que nossas diferenças são valiosas em si mesmas, e enriquecedora para nós como sul-africanos”. Ele lançou recentemente o livro “Justice. A personal Account”, ainda sem tradução no Brasil, inspirador desse texto.
O pai de Edwin Cameron era um homem violento, alcoólatra, que passou parte da vida na cadeia. Ele não conseguia se manter empregado e a cada demissão a situação da família se debilitava. Eles moravam em Pietermaritzburg, capital da província de KwaZulu-Natal. Sua mãe viveu uma vida de miséria, tentando sustentar a família como costureira. Eles não tinham casa.
A irmã mais velha, Laura, morreu quando Edwin Cameron estava com oito anos. A outra irmã, Daphen, ele sequer chegou a conhecer. Antes dele nascer, ela foi entregue à adoção, aos quatro meses de idade. Ele tinha mais uma irmã, Jeanie, que morava com a família. Cameron teve acesso à universidade e chegou a estudar em Oxford graças a bolsas para jovens brancos pobres, num programa de ação afirmativa. Ele é gay. Em 1986, descobriu que era portador do HIV.
A infância de Edwin Cameron foi dura. Certo dia ele gritou por alguma razão em sua casa. O pai falou: “Se você gritar como uma menina, vai ter que se vestir como uma menina!”. Ele repetiu a atitude. Apesar das lágrimas, mesmo esperneando e gritando, foi forçado pelo pai a vestir um dos vestidos de sua irmã. Em seguida, foi arrastado até o jardim para que os vizinhos o vissem. “Lá ele repetiu que garotos não devem gritar como garotas. Corri para dentro o mais rápido que pude, para livrar meu corpo daquela roupa de mulher que me foi imposta vergonhosamente” – desabafa o hoje ministro da Corte Constitucional.
Aquele garoto se transformou num advogado. No mês em que começou sua prática, ele se mudou para uma pequena casa alugada com o seu primeiro parceiro, Wilhelm Hahn, professor de arquitetura da Universidade de Wits. Menos de dois anos depois, Hahn mudou-se para os Estados Unidos. Posteriormente, Cameron foi infectado pelo HIV.
Passados vinte anos, Wilhelm retornou à África do Sul, onde morreu de câncer de próstata, em março de 2008. “Senti o privilégio de estar ao seu lado dois dias antes de sua morte. Fomos capazes de expressar profundamente o quão cuidamos um do outro e como o nosso amor tinha sido, e ainda era, de suma importância para as nossas vidas” – anota o ministro, confidenciando ainda: “Eu resolvi que eu nunca mais iria me desculpar por algo tão profundamente intrínseco à minha natureza, que me faz ser o que eu sou como ser humano. Eu nunca mais iria pedir desculpa por ser gay!”.
Edwin Cameron tem a voz firme, gestos sutis e uma elegância que lembra o ar aristocrático dos “gentlemans” ingleses. Bem alto e de corpo esguio, ele exibe uma face alva, com uma barba impecavelmente feita, olhos claros e uns poucos cabelos brancos em torno de uma cabeça calva. Usando gravatas com estampas em cores fortes, o ministro não vê embaraço em falar sobre a AIDS.
Numa tarde de sexta-feira, dia 19 de dezembro de 1986, ele recebeu uma ligação do seu médico, que disse que ele tinha o HIV. “Nunca é bom ser diagnosticado com uma doença fatal, mas parecia um momento particularmente ruim para mim” – recorda. Cameron estava com 33 anos e seguia sua carreira como advogado na área de direitos humanos.
Ele já havia visto muitos amigos morrerem em razão da doença: “Eu os tinha visto perderem peso, ficarem fracos e morrerem, com os olhos grandes e magros, em casa, asilos e em hospitais. Eu tinha visto suas famílias e os médicos impotentes. Os jovens, principalmente. No auge de suas vidas. Assim como eu” – diz.
Cameron prossegue numa atmosfera de profunda sinceridade e intimidade: “O pior de tudo era o sentimento de vergonha que eu sentia. Eu tinha vergonha de ter o HIV. Mais do que vergonha. Horror. Horror do organismo que tinha infectado o meu sangue e meu corpo. O HIV me fez sentir contaminado. Contaminado. Sujo. Imundo, poluído, impuro”.
Edwin Cameron sobreviveu. Tendo mantido seus tratamentos, o advogado persistiu construindo sua carreira de defesa dos direitos humanos e do enaltecimento da diversidade na África do Sul. Em 2009, foi indicado para a Corte Constitucional do país.
O ministro lembra de quando, no processo de indicação e nomeação, se encontrou com o Presidente da Corte, Arthur Chaskalson. Ele chegou ao gabinete da presidência e aceitou uma xícara de chá. Foi quando disse: “Arthur, você sabe que eu fui nomeado. Mas eu preciso dizer uma coisa: eu tenho HIV!”. Um olhar de choque apareceu no rosto do presidente. Mesmo assim, Arthur o encorajou a aceitar o posto e seguir seu caminho ajudando a construir uma África do Sul mais atenta ao seu compromisso com a diversidade.
Além de falar na diversidade, a Constituição sul-africana assegura a liberdade de orientação sexual: “Não existe nenhuma outra constituição em qualquer lugar do mundo que tenha expressamente mencionado essas duas palavras” – diz, entusiasmado, Edwin Cameron. Para ele, “os temores de que o constitucionalismo seria um fenômeno de elite, confinado a advogados idealistas, têm-se revelado completamente errados. O constitucionalismo é uma das forças mais poderosas em todos os níveis de nossa política e debate nacional” – afirma.
Ele fala pela sua perspectiva de homem orgulhosamente gay, alguém que cresceu com medo e vergonha da sua própria sexualidade, e que agora serve o seu país sem ser desqualificado por ser quem é. “A lei me ofereceu a chance de remediar e reparar a minha vida. A Constituição nos oferece a oportunidade de reparar e corrigir o nosso país” – arremata.
Aquela criança assombrada por um pai violento, tornou-se um jovem consciente da sua orientação sexual e, hoje, um adulto que contribui com a humanização dos debates constitucionais ao redor do mundo. Bem vindos à experiência rica e única que é conhecer um pouco mais da jurisdição constitucional da África do Sul.
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Saul Tourinho Leal, doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, foi pesquisador-visitante na Universidade Georgetown no inverno de 2012. Seus estudos sobre Direito e Felicidade foram mencionados pelo ministro Celso de Mello, do STF, que os qualificou como “preciosos” no leading case que reconheceu o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (ADPF 132). É membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB e autor dos livros Ativismo ou Altivez? O outro lado do STF (Fórum, 2010); Controle de Constitucionalidade Moderno (Impetus: 2010); e Katiba – Vivendo o Sonho do Quênia: O constitucionalismo da esperança na África contemporânea (Impetus: 2013).
O presente artigo faz parte da série Jurisdição Constitucional na África do Sul.

http://www.osconstitucionalistas.com.br/eu-tenho-hiv-revelou-o-ministro-da-corte-constitucional

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