sábado, 5 de outubro de 2013

Prof. Jane Reis Gonçalves Pereira sobre os 25 anos da Constituição

Prof. Jane Reis Gonçalves Pereira (UERJ) sobre os 25 anos da Constituição

"Foi no campo dos direitos humanos que se operaram as conquistas mais relevantes. Negros, mulheres, deficientes e homossexuais têm sido contemplados por políticas inclusivas respaldadas na Constituição. São representativas desse processo de reconhecimento as diversas políticas de cotas, a Lei Maria da Penha e a união homoafetiva. É certo que há ainda um extenso caminho a percorrer, mas os primeiros passos foram dados.

A despeito desses avanços, convivemos com verdadeiras zonas de exclusão de direitos humanos. Há grupos invisíveis cujos direitos fundamentais são sistematicamente negligenciados. Índios, moradores de comunidades pobres e presos vivem sob um regime de exceção, sujeitos a variadas formas de opressão e violência pela ação e pela omissão do Estado. Em relação a tais grupos vulneráveis, é alarmante a naturalização da brutalidade sistemática e a insensibilidade coletiva quanto à gravidade da questão."


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A Odisseia da Carta de 1988: o que conquistamos e o que resta a fazer

Por Jane Reis Gonçalves Pereira
Há 25 anos era promulgada a Constituição de 1988. Um documento que jogava luz no futuro e enunciava o juramento de cessar o longo ciclo de violência estatal, de democratizar a política e de construir um país justo. Na sequência da euforia cívica vivida durante os trabalhos da Constituinte, colocava-se o desafio de transformar em realidade as demandas reprimidas por democracia, liberdade e igualdade.
De todas as promessas de 88, a que foi atendida com mais solidez foi a da estabilidade democrática.  Em um país onde a alternância de poder ocorreu repetidas vezes por meio das armas, de ajustes de gabinete ou da morte, as cinco mudanças na presidência promovidas com respeito às normas constitucionais configuram uma conquista a ser apreciada e festejada.
Não podemos esquecer que apenas duas das oito constituições que tivemos ao longo de nossa história duraram mais que a de 1988: a Carta do Império, de 1824, e a Constituição republicana de 1891. Considerando a instabilidade atávica que marcou nossa trajetória constitucional, esse aniversário deve ser interpretado como um certificado de maturidade institucional.
É verdade que as proclamações da Carta de 1988 já não inspiram o otimismo dos primeiros anos.   Seus defeitos tornaram-se mais aparentes e muitos dos seus comandos são vistos com descrença.  Formou-se uma visão caricatural e anedótica a respeito do perfil detalhista e abrangente do texto constitucional.  Afirma-se, não sem razão, que ele aborda matérias que poderiam ter sido deixadas para a deliberação parlamentar comum. É possível que essa característica seja consequência da falta de confiança no legislador ordinário. Enclausurar certas matérias em normas constitucionais as colocaria a salvo do casuísmo, do personalismo e do oportunismo que estigmatizam a política cotidiana.
Foi no campo dos direitos humanos que se operaram as conquistas mais relevantes. Negros, mulheres, deficientes e homossexuais têm sido contemplados por políticas inclusivas respaldadas na Constituição. São representativas desse processo de reconhecimento as diversas políticas de cotas, a Lei Maria da Penha e a união homoafetiva. É certo que há ainda um extenso caminho a percorrer, mas os primeiros passos foram dados.
A despeito desses avanços, convivemos com verdadeiras zonas de exclusãode direitos humanos. Há grupos invisíveis cujos direitos fundamentais são sistematicamente negligenciados. Índios, moradores de comunidades pobres e presos vivem sob um regime de exceção, sujeitos a variadas formas de opressão e violência pela ação e pela omissão do Estado.  Em relação a tais grupos vulneráveis, é alarmante a naturalização da brutalidade sistemática e a insensibilidade coletiva quanto à gravidade da questão.
A mais importante missão constitucional não realizada é eliminar o fosso que separa os que têm acesso ao Direito e aos direitos e os que não têm.  A sociedade brasileira continua  a conviver com uma distribuição estamental  e censitária dos benefícios de viver em um Estado de Direito. O desafio, doloroso e urgente, é reconhecer e assumir a responsabilidade pelo fato de uma parte do país estar vivendo sob um Estado de não Direito.
Há uma clara relação entre nossa iniquidade ancestral e as demandas que estouraram nas ruas no 25º aniversário da Constituição. A revolta em torno do alto custo e baixa eficiência do transporte público foi o pavio que incendiou uma sequência inédita de manifestações contra a violência policial, por acesso à saúde e à educação,  por inclusão urbana e pela lisura na gestão pública.
Não se trata de uma explosão de cidadania apta a justificar a proposta de convocação uma semiconstituinte para votar a reforma política, cogitada em meio aos protestos como solução de emergência. Bem ao contrário, foi uma demonstração de que as demandas populares constitucionalizadas em 1988 são ainda, em larga escala, as mesmas. Está em jogo a estrutura arcaica que nos sobra e a república que nos falta.
É inegável que o sistema político e eleitoral é o calcanhar de Aquiles da Carta de 1988.  Ninguém mais questiona a necessidade de uma reforma política abrangente. Entretanto, as práticas antirrepublicanas enraizadas e os interesses de grupos já estabelecidos no controle do Estado bloqueiam o avanço da discussão.   A alternativa já aventada, que seria a realização de uma constituinte exclusiva, não compensa os riscos de retrocesso que encerra.  Abstraindo a discussão dogmática sobre a validade e a legitimidade desse tipo de proposta, a história do constitucionalismo nos ensina que a energia constituinte não pode ser pautada ou encapsulada.   Uma vez fissurado o pacto de 88, embarcaríamos em uma viagem de transição constitucional portando apenas o bilhete de ida. Colocaríamos em risco o sucesso mais consistente da Carta de 88, que é a estabilidade advinda da lealdade ao compromisso nela contido. Fazer a reforma necessária de acordo com as regras vigentes é possível e depende, substancialmente, da boa-fé e autenticidade de propósitos dos atores políticos, algo que a convocação de uma assembleia exclusiva não poderia, por si só, garantir. Muito ao contrário, haveria o risco inverso de a assembleia ser capturada e instrumentalizada pelos mesmos agentes conservadores que colonizam as instâncias de representação.
Ao nos distanciarmos cronologicamente dos cenários de ruptura, corremos o risco de cair na armadilha de tomar as liberdades por garantidas e supor que as conquistas já alcançadas são irreversíveis. Não são.  E é exatamente pelo caráter não linear da história que constituições dotadas de supremacia são hoje o modelo jurídico hegemônico nas democracias ocidentais.  Elas estabelecem a fórmula pela qual se tenta amansar as convulsões da política, ditando as regras do jogo e removendo do alcance das maiorias um acervo de direitos e valores fundamentais. Elas são o ponto de apoio e equilíbrio que permite a convivência pacífica entre grupos adversários.   A estabilidade que o pacto de 88 vem nos proporcionando tem um valor intrínseco que não pode ser menosprezado.
Falta-nos, também, a ampliação e efetivação dos mecanismos de democracia participativa que a Constituição de 1988 previu. Plebiscito, referendo e iniciativa popular são ferramentas democráticas subutilizadas e que poderiam  ajudar a desobstruir os canais de decisão bloqueados pelas estruturas conservadoras da representação tradicional.
Acredito que é possível promover as mudanças necessárias sem romper com o acordo constitucional originário.  Porque se há algo que aquela catarse cívica de 1987 a  1988 nos legou é a capacidade de acreditar que o Direito pode ser um instrumento de transformação. Mas há também algo que os insucessos constitucionais e as contínuas falhas do nosso sistema político e social nos ensinam cotidianamente: o Direito não basta.  A aquisição de uma cultura constitucional não é coisa que seja publicada no Diário Oficial ou possa ser registrada em cartório. O grau de valor que se atribui à Constituição é uma decisão política que se constrói aos poucos e que define a trajetória do país.
A Carta de 1988 não é perfeita e não precisa ser. Não é o caso de saudá-la como um documento sobrenatural e infalível. Um compromisso coletivo com a sua normatividade é o que necessitamos para realizar as promessas civilizatórias não cumpridas.  Porque no fim das contas, uma Constituição é um conjunto de palavras que só se tornam verdade se acreditarmos nelas.

http://estadodedireitos.com/2013/10/04/a-odisseia-da-carta-de-1988-o-que-conquistamos-e-o-que-resta-a-fazer/

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