segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Diálogos institucionais e seus limites

Texto interessante no Blog dos colegas da UNB que apontam alguns limites às teorias dos diálogos institucionais. 
“Penso que discutir temas como democracia e direitos fundamentais explorando apenas um “mapa” territorialmente delimitado num Estado Nação, seria uma delimitação teórica excessivamente comprometedora e analiticamente contraproducente com relação aos atuais problemas que enfrentam uma sociedade globalmente relacionada. Analiticamente contraproducente, pois alguns problemas atuais podem ser subestimadossob uma perspectiva reducionista de análise.”
“O que de relevante para a questão democrática está sendo dispensada ao focarmos no eixo Congresso Nacional/Supremo Tribunal Federal? A hipótese seria de que o modelo de diálogos institucionais torna-se incapaz de perceber uma série de interações (ou omissões) institucionais e mutações da funcionalidade dessas mesmas instituições. Talvez, utilizando-se outros “mapas”, focados não muito em funções tradicionais (tais como judicial review e legislação), mas sim em fluxos comunicativos que transpassam a sociedade e seus sistemas sociais, consigam, de certo modo, ter um maior alcance, correlacionando aspectos econômicos, jurídicos e até mesmo políticos de forma coerente.”
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Discutir democracia apenas no Estado? Os desafios à teoria dos diálogos institucionais e a busca por outros mapas

Discussões sobre déficit democrático do Supremo Tribunal Federal e dos potenciais deliberativos do Congresso Nacional já se tornaram lugar comum na teoria constitucional brasileira. Uns mais romantizados, os neoconstitucionalistas, outros mais preocupados com o ativismo judicial e a dificuldade contra-majoritária do tribunal constitucional de tendência mais crítica às decisões judiciais. Muitas dessas discussões estão inseridas como pano de fundo em argumentos da teoria constitucional norte-americana. Entretanto, já algum tempo um outro léxico vem ganhando espaço no debate sobre quem tem a “última palavra”, atribuídas as teorias que se concentram nas relações entre essas duas instituições, denominada “teoria dos diálogos institucionais”[1]. Aliás, um aporte teórico que soma reflexões interessantes somando ao debate a análise de interrelações institucionais a fim de compreender melhor quais as regras do jogo democrático e qual o limite de atuação dessas instituições.
Quem decide o que, quando e por que numa democracia? Esta pergunta, presente no livro “Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação” é explorada por meio de um percurso entre dois projetos teóricos que se apresentam antagônicos aparentemente, mas que demonstram certa complementariedade (MENDES, 2009: p. 276), as teorias da última palavra, e as teorias dos diálogos institucionais. Entretanto, há uma ressalva (rodapé de nº 11): “Omito a dimensão de ‘onde’ para evitar outras discussões intrincadas sobre espaço político, soberania estatal, instituições internacionais etc., que não se aplicam a esta obra.”
Compreende-se que teorizar sobre separação de poderes, direitos fundamentais e democracia exige uma delimitação do problema que se pretende enfrentar. Entretanto, é possível falarmos de democracia, um tema complexo, apenas num plano de Estado Nação delimitado territorialmente? Ainda faz sentido falarmos de legitimidade apenas a partir de interações institucionais limitadas a este plano? Por último: A Separação de Poderes – o arranjo democrático nacional de legitimidade tratado a partir da interação entre Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal -, ainda é passível de ser sofisticada a fim de se atingir “uma forma mais promissora de operá-lo e criticá-lo” (MENDES, 2009: p. 279) atendo-se apenas a um Estado Nacional?
Penso que discutir temas como democracia e direitos fundamentais explorando apenas um “mapa” territorialmente delimitado num Estado Nação, seria uma delimitação teórica excessivamente comprometedora e analiticamente contraproducente com relação aos atuais problemas que enfrentam uma sociedade globalmente relacionada. Analiticamente contraproducente, pois alguns problemas atuais podem ser subestimados sob uma perspectiva reducionista de análise. Se não, vejamos.
Atendo-se ao Supremo Tribunal Federal, é possível observar uma pretensão da corte de formalmente ampliar o escopo desses “diálogos” para instituições externas ao Estado brasileiro a partir da incorporação de mecanismos que possibilitem uma comunicação externa. Por exemplo, a regulamentação de procedimento via Emenda Regimental nº 48 do STF de abril de 2012, que possibilita aos juízes e partes de processos judiciais em andamento no Brasil o encaminhamento de consultas ao Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul a respeito da interpretação de dispositivos dos tratados que compõem o arcabouço normativo do Mercosul.http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalDestaques&idConteudo=208016>.
Por outro lado, além das evidências formais, casos eventuais também mostram que decisões de organismos internacionais ou mesmo cortes regionais pressionam a atividade da jurisdição constitucional do STF contribuindo para uma reconfiguração de decisões pretéritas do tribunal constitucional brasileiro. É o caso da OMC e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O caso da decisão do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio sobre a importação brasileira de pneus usados que envolvem tanto o direito constitucional brasileiro, as ordens jurídicas do Uruguai e Paraguai, quanto o direito do Mercosul e a ordem jurídica da OMC. A decisão WT/DS332/AB/R e WT/DS332/R estabeleceram o prazo de um ano para que o Brasil cumprisse as recomendações de abolir a importação de pneus recauchutados do Paraguai e Uruguai alegando argumentos referentes à proteção do meio ambiente. Teve por consequência a decisão do STF na ADPF 101-DF.
Sobre a influência de cortes regionais, é possível perceber, em contraposição à decisão do STF na ADPF 153 (lei de Anistia), a emergência de uma possível reconfiguração desta decisão pela tentativa de descobrir violações a direitos humanos no período estipulado no artigo 8º da ADCT que corrobora com uma tentativa mais direta de revisão da decisão do STF como constado num debate na subcomissão de Memória do Senado Federal. Link. <http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/08/26/revisao-da-lei-de-anistia-e-defendida-em-debate-na-subcomissao-da-memoria>; além do pedido de julgamento pela Ordem dos Advogados do Brasil do recurso de embargos declaratórios para sanar omissões e aporias da decisão apresentada na ADPF 153, procrastinada pelo STF. Vide. <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=203265>
Tais exemplificações nos fazem refletir sobre como justificar a legitimidade da influência de instituições como a OMC, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ou mesmo o Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul sob a jurisdição constitucional brasileira e reforça a necessidade de um deslocamento do eixo STF/Congresso Nacional sobre a questão democrática a fim de reformular o campo de análise para além do Estado na tentativa de se pensar sobre a limitação reflexiva decorrente de um direcionamento provinciano da “teoria” e “prática” constitucional brasileira[2][8].
O fenômeno da globalização do direito constitucional doméstico (TUSHNET: 2008) já é um dado levado em consideração mesmo por aqueles que se incomodaram, num primeiro momento, com a supremacia da corte constitucional dentro de um debate adversarial entre parlamento e tribunal constitucional[3]. Mesmo assim, percebe-se ainda certo incômodo ou mesmo indiferença (feedback negativo[4]) da tradição jurídica constitucional a estes desafios na insistência de alguns “mapas” tais como o apresentado sob as bases da teoria dos diálogos institucionais.
Não, a intenção, diga-se, não é dizer que “todos os outros estão errados” e revolucionar os programas teóricos convencionais que vem sendo discutidos. Entende-se que por trás de um enfoque “x”, acompanha-se um desfoque “y”. Há sempre algo que não se consegue “ver” em determinadas reflexões teóricas, ou seja, há sempre um “ponto cego” em algumas proposições. Se o problema central diz respeito a compreender o jogo democrático e quais “regras” estão sendo descumpridas, ao nos concentrarmos muito no Supremo Tribunal Federal – o impacto das decisões, a fragilidade e o diletantismo dos argumentos utilizados por alguns ministros além da capacidade deliberativa de questões pertinentes naquele tribunal – quais dados estão sendo dispensados neste tipo de análise? O mesmo ocorre para o Congresso Nacional – com decisões legislativas pertinentes e outras álibis, sua racionalidade política que incomoda alguns ao mesmo tempo desperta motivação em outros. O que de relevante para a questão democrática está sendo dispensada ao focarmos no eixo Congresso Nacional/Supremo Tribunal Federal? A hipótese seria de que o modelo de diálogos institucionais torna-se incapaz de perceber uma série de interações (ou omissões) institucionais e mutações da funcionalidade dessas mesmas instituições. Talvez, utilizando-se outros “mapas”, focados não muito em funções tradicionais (tais como judicial review e legislação), mas sim em fluxos comunicativos que transpassam a sociedade e seus sistemas sociais, consigam, de certo modo, ter um maior alcance, correlacionando aspectos econômicos, jurídicos e até mesmo políticos de forma coerente.
Mas, o que se quer dizer com “outros mapas”? Toma-se emprestado o conceito de David Kennedy sobre a necessidade de “melhores mapas” que consigam refletir sobre os regimes jurídicos de governança global na tentativa de gestar uma série de dúvidas sobre as certezas tradicionalmente difundidas na doutrina constitucional a respeito de qual seria propriamente o espaço de discussão mais adequado sobre temas, tais quais, democracia e direitos fundamentais.
Trata-se de uma conferência denominada “The mystery of global governance” em que David Kennedy, professor de Política e Direito Global da Universidade de Harvard, se propõe a debater sobre as tentativas, no campo jurídico, de se discutir sobre o direito que se manifesta fora e entre os Estados, enfatizando sua análise nos programas teóricos desenvolvidos nos principais centros e periferias do mundo acadêmico. Além disso, comenta os esforços de algumas propostas teóricas que já começam a refletir sobre tais questões. Entre as disciplinas tradicionais do direito, as influências do processo de profissionalização e especialização do mundo jurídico contribuem para a produção de um déficit de interdisciplinaridade, refletindo assim em poucas reflexões sobre as limitações proporcionadas pela dicotomia  “nacional” e o “internacional”, além das possibilidades de flexibilização desta dicotomia no âmbito jurídico.
Por fim, entre tantos outros questionamentos, o último: Em que medida, isto se reflete inconscientemente na reprodução de ideias focadas em discutir a questão democrática apenas entre o eixo Congresso Nacional/Supremo Tribunal Federal, no Brasil? Ou seja, em que medida este mapa passa de: “delimitação do objeto”, ou “delimitação do tema”, ou até mesmo “delimitação do problema” em uma determinada análise; e passa a constituir um verdadeiro “controle cognitivo”, prejudicando a compreensão de outras variáveis de suma importância ao jogo democrático?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ACKERMAN, Bruce, “The Rise of World Constitutionalism” (1996). Occasional Papers.Paper 4. <http://digitalcommons.law.yale.edu/ylsop_papers/4>.
BRUNKHORST, Hauke. “There Will be Blood: Konstitutionalisierung Ohne Demokratie?” in. H. Brunkhorst, ed., Demokratie in der Weltgesellschaft, Special issue, Soziale Welt, Nomos (2009). (trad. bras.: “Constitucionalização sem democracia?” In. Antonio Carlos Alpino Bigonha e Luiz Moreira (orgs). Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010).
HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo> Littera Mundi, 2001.
HOLMES, Pablo. The rhetoric of legal fragmentation and its discontents: Evolutionary dilemmas in the constitutional semantics of global law. Utrecht Law Review, v. 7, p. 113-140, 2011.
HOLMES, Pablo. Verfassungsevolution in der Weltgesellschaft: Differenzierungsprobleme des Rechts und der Politik im Zeitalter der Global Governance. 1. ed. Baden-Baden: Nomos Verlag, 2013.
KENNEDY, David.“The mystery of Global Governance”. In: Ruling the World – Constitutionalism, International Law, and Global Governance. New York: Cambridge University Press, 2009.
MAUS, Ingeborg. “Zur Ideengeschichte der Gewaltenteilung und der Funktionsweise der Justiz. Eine demokratietheretische Perspektive”. (trad. bras.: “Separação dos Poderes e Função Judiciária. Uma Perspectiva Teórico Democrática”. In: Antonio Carlos Alpino Bigonha e Luiz Moreira (orgs). Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010.
MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011.
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, con especial referencia a la experiencia latinoamericana. In: Armin von Bogdandy; Eduardo Ferrer Mac-Gregor; Mariela Morales Antoniazzi. (Org.). La Jusiticia Constitucional y su Internacionalización Hacia un Ius Constitutionale Commune en América Latina?. 1ed. México: Universidad Nacional Autônoma do México, 2010, v. 2.
TUSHNET, Mark. “The Inevitable Globalization of Constitutional Law” (December 18, 2008). Hague Institute for the Internationalization of Law; Harvard Public Law Working Paper No. 09-06. Available at <SSRN: http://ssrn.com/abstract=1317766 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1317766>.
VARELLA, Marcelo Dias. Efetividade do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio: uma análise sobre os seus doze primeiros anos de existência e das propostas para seu aperfeiçoamento. Rev. bras. polít. int. [online]. 2009, vol.52, n.2, pp. 5-21. <http://dx.doi.org/10.1590/S0034-73292009000200001>.




[1] No contexto brasileiro, destaca-se o livro “Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação” do professor da Universidade de São Paulo, Conrado Hübner Mendes.
[2] Bruce Ackerman faz este alerta no contexto dos Estados Unidos criticando o “provincianismo” da teoria e prática constitucional norte-americana. (ACKERMAN: 1996).
[3] Além de Tushnet, vide. (MAUS: 2010) Também, (HABERMAS: 2001).
[4] Muitas das reflexões sobre este texto devem-se ao seguinte trecho do artigo de Pablo Holmes: “Em outras palavras, como o constitucionalismo democrático funciona como estrutura retórica do que Luhmann costumava chamar de semântica totalitária de inclusão de todos os indivíduos nos sistemas funcionais da sociedade mundial, os problemas relativos à globalização do direito e da política são registrados de modo negativo pela tradição política e jurídica constitucionais, por desafiarem as suas estruturas institucionais básicas e aparentemente representar bifurcações evolucionárias da própria diferenciação funcional.” (HOLMES: 2011).

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