domingo, 8 de dezembro de 2013

Entrevista com Giuseppe Cocco

Entrevista imperdível com o Professor Titular da UFRJ Giuseppe Cocco

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/526455-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco


“O movimento não apenas nos diz que a separação da fonte (o povo) vis-à-vis do resultado (os representantes) é imoral, mas explícita, e torna visível que essa dimensão imoral do poder está baseada na violência de suas polícias.”
“O levante de junho não foi uma explosão efêmera, mas uma potentíssima bifurcação dentro da qual ainda estamos. Nessa bifurcação, as possibilidades de democracia direta nos aparecem ao mesmo tempo potentes e ativamente bloqueadas, literalmente criminalizadas por um Ministro da Justiça que transforma em crime, com apoio entusiasta da imprensa hegemônica, os direitos constitucionais de manifestação e livre opinião.”
“É que a forma espúria de agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra suas mobilizações democráticas.”
“a persistência do movimento nos mostra as dimensões produtivas e, nesse sentido (..) uma multiplicidade de iniciativas: advogados da OAB, grupos de advogados ativistas, grupos de primeiros socorros, coletivo projetação, autoformação nas ocupações, músicos e bandinhas, uma multidão de mídias produzindo desde inúmeros streamings e documentários passando por todos os tipos de registros fotográficos. A democracia que o movimento desenha é constitutiva e é mesmo produtiva. O fato de um processo de subjetivação que mostra toda a potência das redes e das ruas.”
“Lembremos que, em junho, os partidos tradicionais (de governo e de oposição) criticavam o movimento por não ter organicidade, lideranças e “projeto”. Caberia perguntar: quais são, hoje, a organicidade e os projetos dos partidos?”
“O que o movimento fez e faz não é praticar a violência, mas tornar explícita e visível a violência do poder e seus sistemas de (in)justiça, como do caso Amarildo, o pedreiro torturado, assassinado e feito desaparecer na sede da UPPda PM da Rocinha do Rio de Janeiro.”

“Porém, milhares de jovens pobres descobriram, em junho, que havia uma brecha para lutar. O Brasil dos megaeventos, das Copas e das Olimpíadas não pode repetir nas ruas e praças o que faz nas favelas, periferias e subúrbios todo santo dia. Não é por acaso que isso aconteceu durante a Copa das Confederações
A luta foi contra, mas dentro: dentro e contra. Essa brecha é claramente democrática, pois por meio dela os jovens pobres (mesmo que na maioria sejam os mais dinâmicos — prounistas, reunistas, etc.) encontraram a possibilidade de lutar, fugindo ao duplo mecanismo racista e assassino que normalmente é usado para controlá-los: o arbítrio da polícia e aquele do narcotráfico, sendo que às vezes ele toma o nome de “milícia”.
Ao mesmo tempo, os jovens que encontraram essa brecha não acreditam na representação e querem muito mais e melhor. Não querem nenhuma bandeira que não seja aquela que eles mesmos afirmam e produzem em sua luta. Além disso, me parece, esses jovens, e mais em geral os jovens que decidiram entrar para a política em junho, pensam que o único modo de fazê-lo é conseguir certo nível de efetividade, ou seja, ficando nas ruas nas maneiras mais autônomas e determinadas possíveis.”
“Em junho, dirigentes do PT e do governo chamaram para o perigo do “golpe”, falaram de coxinhas e também de “fascismo e barbárie” nas manifestações. Tive um vivo debate com meu amigo Tarso Genro, na presença deBoaventura de Souza Santos, em Lisboa (em julho deste ano), durante o qual ele falava de fascismo e da “marcha sobre Roma”. Ora, o fascismo é um fenômeno estatal, nacionalista e identitário: totalmente o contrário dos discursos, das bandeiras e da estética destes garotos. Quem tem ares de fascismo é Vargas, ao qual Emir Sader comparou oPresidente Lula. Quem é ambíguo é o nacionalismo que circula na esquerda neodesenvolvimentista (inclusive, como vimos no Leilão de Libra, faz como o fascismo: retórica nacionalista e política entreguista).”

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Entrevista - José Geraldo de Sousa Júnior

"[A Constituição de 1988 é] um canal para a participação popular, e não um dique para conter o protagonismo do verdadeiro poder soberano, que é o poder popular, do verdadeiro sujeito de direitos, e que o direito não é criado institucionalmente, ele é criado socialmente”

"queria dizer que há 25 anos venho dizendo, com “O Direito Achado na Rua” [10], que é preciso estabelecer o protagonismo dos sujeitos sociais. É claro que nisso está colocada uma metáfora que toma a rua como tradução da ideia de espaço público, algo que culturalmente esteve sempre muito bem designado no horizonte notadamente literário e antropológico em nosso país. Castro Alves [11], no célebre poema chamado Do povo ao poder [12], já dizia que “A praça é do povo, como o céu é do condor/É o antro onde a liberdade cria águias em seu calor/Quereis, pois, a praça desgraçada populaça que só tem a rua de seu”, ou Cassiano Ricardo [13], no poema notável chamado “Sala de Espera” [14], se referia à rua como o lugar do acontecimento. A rua, dizia ele, “Republicana, transeunte, da procissão/De protesto, do comício/A rua do acontecimento social/A rua da reinvindicação social”."


A Constituição e a construção de direitos. Entrevista especial com José Geraldo de Sousa Junior


“Há 25 anos venho dizendo, com ‘O Direito Achado na Rua’, que é preciso estabelecer o protagonismo dos sujeitos sociais”, assinala o ex-reitor da UnB.
Foto: http://bit.ly/18bh5J5
“Tal constituição é a expressão de um processo contínuo em construção de direitos. Se a gente assistir ao apelo doArtigo 5º da Constituição, vai ver que ali tem um elenco grande de direitos, mas a chave de encerramento do artigo é de que nem isso esgota outros direitos que decorram da natureza do regime ou dos princípios que a Constituição adota. Se a natureza do regime é a democracia, então, como lembra Marilena [Chauí], a democracia é o regime que permite a criação permanente de direitos”, consideraJosé Geraldo de Sousa Junior, em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line. Para o professor, os princípios da Constituição incluem os direitos humanos, o que permite a condição de reconhecimento e protagonismo de diversos atores sociais. “O direito já está inscrito nos processos legitimadores de sua emergência social. Assim, por exemplo, é que surgiu o direito de morar. (...) Uma disputa que é semântica, que é legal e que é política, dentro de uma dimensão de diálogo, que a Constituição permite”, avalia.
Para José Geraldo de Sousa Junior, o processo constituinte e a formulação da Constituição de 1988 resultou em um documento que é um instrumento mediador, uma estratégia de transição, considerando a Carta Magna “um canal para a participação popular, e não um dique para conter o protagonismo do verdadeiro poder soberano, que é o poder popular, do verdadeiro sujeito de direitos, e que o direito não é criado institucionalmente, ele é criado socialmente”, destaca. Nesse sentido, ele considera que estamos completando um processo de transição que se iniciou há 25 anos e que mantém a construção da cultura republicana, iniciada com a constituinte. “A questão da memória e da verdade fecha o debate no contexto de transição”, complementa.
José Geraldo de Sousa Junior possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestrado e doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UNB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UNB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UNB.
Confira a entrevista.
Foto: http://bit.ly/Iw0Q3y
IHU On-Line – Como podemos pensar o surgimento da Constituição Federal de 1988 traçando um paralelo histórico do Brasil?
José Geraldo de Sousa Junior - Pense que o batismo da Constituição feita pelo presidente da constituinte, Ulysses Guimarães, de Constituição Cidadã, ganha mais relevo quando se contrasta com o batismo da primeira Constituição brasileira após a Independência, em 1824, cujo apelido eraConstituição da Mandioca [1]. Isso significa um percurso de construção da República e da Cidadania do nosso país. Por que Constituição da Mandioca? Porque ela era censitária e, portanto, concedia uma cidadania a proprietários, “homens de bem”, sendo fortemente excludente, pois colocava à margem o reconhecimento do protagonismo social, sobretudo dos trabalhadores, à medida que estávamos em um regime escravocrata. Na Constituição de 1891, já na época republicana, as mulheres, os analfabetos, os jovens, os clérigos, os praças, todos eram postos à margem de um processo político que envolvesse o exercício ativo centrado na concepção de exercício do sufrágio.
Daí se justifica a tese de José Murilo de Carvalho [2] sobre a existência ou não de povo no Brasil. E, no bojo dela, de uma necessidade de distinguir aquilo que ele chama de cidadania ativa, que não era a do sufrágio, mas a do protesto. Porque o núcleo da sua emergência não é o exercício formal do voto, mas a capacidade de mudar as relações do social por meio da revolta. Por isso que ele estuda a Revolta da Chibata [3].
Bem, comparando esse momento, que é o da condição de passividade da cidadania, com o momento de 1988, constata-se que ela se tornou não só representativa, mas direta. Não só concedida, mas conquistada, porque no espaço de debate da constituinte acudiram por reivindicação de participação sujeitos que, inclusive, não aceitaram as regras de delegação no modelo representativo tradicional. Ocuparam o espaço da constituinte para fazer uma “batalha virtual” em torno da construção do regimento da constituinte e conseguiram escrever a tese em que o social, por meio de suas representações, pudesse ter um papel proponente no esforço de construir a Constituição.
IHU On-Line – Que cidadania emerge desse novo documento?
José Geraldo de Sousa Junior - É uma cidadania de democracia direta, que traduz uma nova noção que, a meu ver, foi magistralmente elaborada pela professora Marilena Chauí [4] , no prefácio que fez ao livro do sociólogo Éder Sader[5], intitulado Quando novos personagens entraram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980) (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988), aludindo ao protagonismo dos movimentos sociais. EntãoMarilena comenta, nesse caso, de que se inscreve na ação dos novos movimentos sociais um sujeito novo, que é o titular da cidadania ativa, um sujeito novo, autônomo. Este, pela mediação da cidadania, se dá a si próprio os direitos, a chave de conhecimento da nova Constituição.
Tal Constituição é a expressão de um processo contínuo de construção de direitos. Se a gente assistir ao apelo doArtigo 5º da Constituição [6], vai ver que ali tem um elenco grande de direitos, mas a chave de encerramento do artigo é de que nem isso esgota outros direitos que decorram da natureza do regime ou dos princípios que a Constituição adota. Se a natureza do regime é a democracia, então, como lembra Marilena, a democracia é o regime que permite a criação permanente de direitos.
IHU On-Line – De que maneira a Constituição viabilizou o chamado “Direito Achado na Rua”?
José Geraldo de Sousa Junior - Se os princípios que ela [a Constituição] adota incluem os direitos humanos, o jurídico já está inscrito como condição de reconhecimento, independentemente de sua legalização. O direito já está inscrito nos processos legitimadores de sua emergência social. Assim, por exemplo, é que surgiu o direito de morar. No contexto legislativo, a ação política produziu os deslocamentos fáticos para descriminalizar tipos penais que eram criminalizados pelo requisito da invasão (esbulho possessório [7]), quando os movimentos sociais disseram que aquilo era ocupação. Uma disputa que é semântica, que é legal e que é política, dentro de uma dimensão de diálogo, que a Constituição permite.
É preciso considerar algo que está no horizonte de sentido de nossa cultura política e jurídica, e que em relação à Constituição caracteriza algumas atitudes. Então, a atitude negativista, por exemplo, considera que o processo constituinte não alcança o cerne daquilo que é o fato de poder ou o fato de domínio, enquanto dimensão econômica, criando uma hierarquia entre classes, entre grupos. Isso não é verdade. Na representação do jurídico e do institucional, os protagonismos desenham seus projetos e criam horizontes a partir dos quais eles se movem para realizá-los.
Então a constituinte não pode ser vista, como muitos a observaram, no sentido de que é mais um arranjo de dominação e que é a substituição formal de uma legalidade por outra. Isso é uma atitude que está presente no debate constituinte e que é impotente porque é conformista e é rendida de saída. Não pode ser também uma atitude que em outros tempos era de puro idealismo, achando que o Jurídico é uma vara de condão: tocou e transforma a realidade.
IHU On-Line – É possível perceber na jurisdição pós-constituinte marcas do autoritarismo de Estado e a defesa das elites do período anterior à redemocratização?
José Geraldo de Sousa Junior - A ditadura de 64, por exemplo, manteve Parlamento, Judiciário e Constituição, mas não aplicava as leis. Ou criou uma forma desdobrada de organização do seu poder que subordinou a Constituição, que sufocou o Parlamento e que estrangulou o Judiciário. Isso, entretanto, condicionava os requisitos de uma chamada “ideologia de segurança nacional”. A ilusão do legalismo, de uma troca de legalidade por outra, inclusive conteve alguns segmentos que podiam ter sido mais críticos no processo e podiam ter contribuído para abreviá-lo: como a Igreja, a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, etc., em nome da ilusão idealista da legalidade.
Essa legalidade era espúria, era a legalidade que existia no nazismo e foi desmontada por críticas como aquelas que se escreveram na instauração do tribunal de Nuremberg [8], onde os juízes, por exemplo, se diziam confortáveis por terem cumprido as leis. Mas é preciso uma atitude finalista que entenda as transições mediadas pela política, elas são a possibilidade de abertura de mediação política para criar canais de manifestação de novas formas de sociabilidade, de novas estratégias de regulação social, e as leis têm de ser suficientemente plásticas para permitir a circulação dessas transformações. Ou seja, um sistema constitucional não é um fim, é um ponto de partida, e a legislação é uma estrutura porosa por meio da qual as novas sociabilidades podem emergir, ser reconhecidas e reinstitucionalizadas. Como estamos assistindo hoje, à medida que percebemos que muitas instituições se abrem a esse processo.
IHU On-Line – Como a Constituição de 1988 dialoga com os desafios à transparência do poder Judiciário?
José Geraldo de Sousa Junior - A última das instituições a se abrir é a judiciária, quando observamos, por exemplo, oSupremo Tribunal Federal - STF aceitando o modelo da participação nas audiências públicas, até em uma certa negociação legitimada sobre o alcance hermenêutico das normas constitucionais. Por isso eu diria que a Constituição de 1988 entendeu que era um instrumento mediador, era uma estratégia para a transição, um canal para a participação popular, e não um dique para conter o protagonismo do verdadeiro poder soberano que é o poder popular, do verdadeiro sujeito de direitos, e que o direito não é criado institucionalmente, é criado socialmente. As instituições são os seus tradutores e esse processo é permanente, não estanque.
Uma legalidade nova não é um termo do processo, é uma mediação que vemos como recuperação, inclusive, do ponto de vista teórico, de verdadeiras teorias. Se lembrarmos o que diz o professor Canotilho [9], grande constitucionalista português, advertindo os constitucionalistas de que eles devem se prevenir contra o formalismo constitucional, porque se não tiverem um olhar vigilante sob as exigências do direito justo, orientados por teorias de sociedade e por teorias de justiça, eles jamais perceberão a necessidade de elaborar outros modos de consideração da regra do direito. E aí, curiosamente, Canotilho, no livro Teoria da Constituição e do Direito Constitucional (São Paulo: Editora Almedina, 2003), sugere que, entre estes outros modos de consideração da regra do Direito, fiquemos atentos às chamadas práticas sociais, para orgulho nosso, ele diz, ao que formula o chamado “Direito Achado na Rua” , aludindo a um importante movimento teórico-prático que se desenvolve na Universidade de Brasília - UNB.

IHU On-Line – Para além da reforma política bradada nas ruas do Brasil nas manifestações ocorridas em junho — onde foi aventada pela presidente Dilma a instauração de uma Constituinte e depois deixada de lado —, podemos pensar em uma reforma de direitos? Isso traria benefícios à sociedade?
José Geraldo de Sousa Junior - Em primeiro lugar, queria dizer que há 25 anos venho dizendo, com “O Direito Achado na Rua” [10], que é preciso estabelecer o protagonismo dos sujeitos sociais. É claro que nisso está colocada uma metáfora que toma a rua como tradução da ideia de espaço público, algo que culturalmente esteve sempre muito bem designado no horizonte notadamente literário e antropológico em nosso país. Castro Alves [11], no célebre poema chamado Do povo ao poder [12], já dizia que “A praça é do povo, como o céu é do condor/É o antro onde a liberdade cria águias em seu calor/Quereis, pois, a praça desgraçada populaça que só tem a rua de seu”, ou Cassiano Ricardo [13], no poema notável chamado “Sala de Espera” [14], se referia à rua como o lugar do acontecimento. A rua, dizia ele, “Republicana, transeunte, da procissão/De protesto, do comício/A rua do acontecimento social/A rua da reinvindicação social”.
Algo que está em nossa antropologia se pensarmos em Da Mata [15] e na tese simbólica d’A casa e a rua (Rio de Janeiro: Rocco, 1984), e que está na literatura universal se pensarmos em Marshall Bermann [16] em seu livro Tudo o que é sólido desmancha no ar (São Paulo: Companhia das Letras 1986), em que ele estuda a literatura, mas extrai desse estudo a representação de que a rua é o lugar em que a multidão transeunte, em seus encontros e desencontros, ao reivindicar a liberdade de direitos, se transforma em povo. Então é essa a representação que está no ambiente literário, no simbólico de nossa interpretação da ideia republicana de espaço público que o direito artificializou, sempre cindiu e que de repente se tornou forte e gritante com as manifestações de junho, porque elas foram potencializadas pelos meios de comunicação.
Movimentos sociais
Sempre tivemos participação de movimentos sociais. A presidenta [Dilma Rousseff], apesar da perplexidade daquele quadro, foi quem mais depressa reagiu. E ela conduziu os dois âmbitos que eu acho que são importantes. O primeiro é algo que filosoficamente sempre discutimos: o que é o poder constituinte e como ele age. Uns dizem que ele é permanente, como Negri [17]. Os revolucionários das grandes mudanças sociais que demarcam as revoluções do século falam em revolução permanente. O poder constituinte é um cotidiano de transformações, ou seja, as reciprocidades que se estabelecem em um cotidiano de interação social e que fazem das cotidianidades um elemento de atualização das demandas, inclusive jurídicas, do grande protagonista, que é o povo organizado. Então o processo constituinte é um processo permanente, mas não basta um movimento, é preciso uma institucionalização, e há elementos cristalizadores desse processo, com maior ou menor rigidez.
Papel da legislação
Do ponto de vista teórico, devemos considerar a condição de um momento constituinte, por conta do simbólico da constituição, por conta do que a institucionalização representa em termos formais para a fixação dos grandes momentos, acordos e entendimentos que são as estruturas legitimadoras e educadoras do processo. A legislação tem esse papel, serve a um programa pedagógico. Então é preciso caracterizar um momento constituinte onde se formaliza um pacto, um acordo, e a Constituição é a tradução disso. No século XIXFerdinand de Lassalle [18], referindo-se ao que era essencial na Constituição, já sustentava que se ela não traduzisse a representação real dos fatores do poder, seria uma expressão jurídica nominal e, consequentemente, uma mera folha de papel.
Povo na rua
No caso de 1988, a gente percebeu que existia um esgotamento de um sistema de poder com a emergência de um outro sistema de poder. Não era uma revolução, mas um momento constituinte, povo na rua, crítica à legalidade vigente, perda de legitimação do poder segmentado na sua formatação militar. Enquanto em 1964 a armada americana deu cobertura, em 1988 a retomada, nos Estados Unidos, da ideologia da liberdade começou a questionar os excessos da ditadura, tortura, assassinato. Então o momento estava dado ali. Em 2013, esse momento constituinte está colocado? Eu diria que não, mas por que não? Porque o que o povo pede não é uma mudança na Constituição, pede o cumprimento dela. Uma maior participação, o cumprimento das funções institucionais dos poderes constituídos no enfrentamento das questões que abalam a cidadania, a corrupção, a impunidade, a leniência dos poderes, inclusive o Judiciário. O que o povo pede é isso.
É claro que a tentação de responder às demandas reais por representações formais veio, mas a presidenta interpretou a conjuntura adequadamente e fez a segunda coisa que eu acho essencial, convocou o povo para ter papel. Então, não é que ela recuou, ela depurou a proposta. Ela disse: “Reconheço a legitimidade da sua presença na cena pública.” A presença na cena pública é orientada pela política e não pela criminalização, e ela pede participação. Então sugeriu um plebiscito. Propôs que se discutisse com o povo os itens que deveriam ser objeto de uma grande reforma e, no primeiro momento, ela pensou que seria uma mudança constituinte, mas em um segundo momento ela entendeu que não era, pois a Constituição não tinha sequer realizado as suas promessas mais inovadoras. Era a implementação dessas propostas em torno de uma agenda captada desde as implementações sociais colocadas em um elenco que ela dizia, “cabe agora à sociedade, por plebiscito (que é uma das formas de participação definidas da própria Constituição), dizer o seu alcance”.
Plebiscito
E por que plebiscito? Porque ele pressupõe o debate, pressupõe a construção dos consensos de todos esses pontos, o esclarecimento, o tempo de televisão para debater e para discutir, o espaço para se organizar, os formatos intermediários de esclarecimentos nas universidades, nas organizações, nos comícios. Então, acho que ela reagiu bem e adequadamente. E gerou um debate que não é nem teórico, é doutrinário, em torno de uma tradição da cultura jurídica sobre os modelos de constituição e de revisão, se podia ou não podia fazer revisão constitucional, ou nova constituinte, ou constituinte setorial. Porém, no essencial do ponto de vista da política, acho que ela foi a melhor resposta sensível às condições do momento.
IHU On-Line - Em que medida a Constituição de 1988 se configura, ainda hoje, como um processo de transição democrática?
José Geraldo de Sousa Junior - O aprendizado que a sociedade brasileira desenvolve e que tem como eixo a passagem de uma cultura oligárquica e hierárquica, infantilizadora do social, que foi tão bem estudada por teóricos da cultura como Sérgio Buarque de Holanda [19], Raimundo Faoro [20], Victor Nunes Leal [21] e que caracterizam, na precondição republicana, a política do favor, do clientelismo, do apadrinhamento, do filhotismo, em um contexto que a gente luta a duras penas pela cultura dos direitos. Isso passa para uma condição republicana, onde os processos das políticas devem ser legitimados sob formas de reconhecimento e validação. Do ponto de vista do que vem da rua, um novo horizonte é aberto ao se reivindicar políticas de transparência, políticas de controle social, políticas de responsabilização, o que envolve as indicações que a grande filósofa Hannah Arendt [22], ao examinar as crises da república, sugeriu que não perdêssemos de vista. Entre elas está a discussão sobre o fundamento legitimador das leis, que significa construir os pressupostos de constitucionalidade das leis, sob pena de desobediência civil e de resistência à opressão, a discussão sobre a transparência, cujos processos pedagógicos devem ser abertos à discussão, a instituição dos controles democráticos que a Constituição estabeleceu, uma cultura de verdade e não de mentira. Por isso eu diria que essa transição que estamos completando, que é a construção da cultura republicana no país que a Constituição instituiu, sendo a constituinte seu grande mediador, mas seus postos e supostos são a anistia[23], discutida lá atrás, e a memória e a verdade que saem como horizontes. A questão da memória e da verdade fecha o debate em contexto de transição.
(Por Ricardo Machado)
NOTAS
[1] Constituição da Mandioca: denominação popular ao primeiro projeto de constituição do Brasil, cuja votação, em 1823, veio a ser interrompida pelo Imperador D. Pedro I em novembro daquele ano, ao determinar o fechamento daAssembleia Nacional Constituinte(Nota da IHU On-Line)
[2] José Murilo de Carvalho (1939): cientista político e historiador brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras. É autor, entre outras obras, de A formação das almas: o imaginário da República no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1990) e Cidadania no Brasil – o longo caminho (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001). Concedeu as entrevistas Independência do Brasil: Um movimento socialmente conservador, na Edição 234, daRevista IHU On-Line, disponível em http://bit.ly/1gT7I4F, e Os desafios à construção da cidadania brasileira, na Edição 428 da Revista IHU On-Line, disponível em http://bit.ly/1buOwtt. (Nota da IHU On-Line)
[3] Revolta da Chibata: eclodiu em 1910 na Baía de Guanabara. Na ocasião, dois mil marinheiros da Marinha se rebelaram contra a aplicação dos castigos físicos a eles impostos como punição. (Nota da IHU On-Line)
[4] Marilena de Souza Chauí: filósofa e professora de filosofia política e história da filosofia moderna da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH). Escreveu inúmeros livros, entre eles Da Realidade sem Mistérios ao Mistério do Mundo, Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária, Professoras na Cozinha, Introdução à História da Filosofia e Política em Espinosa. É reconhecida não só pela sua produção acadêmica, mas pela participação efetiva no contexto do pensamento e da política brasileira. Já foi secretária municipal da Cultura na cidade de São Paulo durante o mandato da ex-prefeita Erundina (1988-1992). (Nota da IHU On-Line)
[5] Eder Simão Sader (1941-1988): foi um sociólogo brasileiro perseguido pela ditadura militar. Exilou-se no Chile entre 1971 e 1973 e em seguida na França, entre 1974 e 1979. (Nota da IHU On-Line)
[6] Caput Artigo 5º da Constituição: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. (Nota da IHU On-Line)
[7] Esbulho processório: o ato pelo qual uma pessoa perde a posse de um bem que tem consigo (sendo proprietário ou possuidor) por ato de terceiro que a toma forçadamente, sem ter qualquer direito sobre a coisa que legitime o seu ato. É o caso, por exemplo, de pessoa que entra sem autorização em terreno de outrem e o ocupa, sem que a posse do terreno lhe tenha sido transmitida por qualquer meio. (Nota da IHU On-Line)
[8] Tribunal de Nuremberg: tribunal que julgou os processos contra os 24 principais criminosos de guerra da Segunda Guerra Mundial, dirigentes do nazismo, ante o Tribunal Militar Inernacional, em 20 de novembro de 1945, na cidade alemã de Nuremberg. (Nota da IHU On-Line)
[9] José Joaquim Gomes Canotilho (1941): jurista português e professor catedrático da Faculdade de Direito daUniversidade de Coimbra, e professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, considerado por muitos como um dos nomes mais relevantes do direito constitucional da atualidade. Foi distinguido com o Prémio Pessoa em 2003 e com a Comenda da Ordem da Liberdade em 2004. (Nota da IHU On-Line)
[10] Direito Achado na Rua: expressão criada por Roberto Lyra Filho para pensar o Direito derivado da ação dos movimentos sociais, ou seja, como modelo do que seu autor considerava "organização social da liberdade". Seria o encontro dos Novos Movimentos Sociais e o Direito, indo além do legalismo, procurando encontrar o Direito na "rua", no espaço público, nas reivindicações da população. (Nota da IHU On-Line)
[11] Antônio Frederico de Castro Alves - Castro Alves (1847-1871): poeta brasileiro, nascido na fazenda Cabaceiras, distante cerca de 42 quilômetros da vila de Nossa Senhora da Conceição de "Curralinho", hoje chamada de Castro Alves, no estado da Bahia. Suas poesias mais conhecidas são marcadas pelo combate à escravidão, motivo pelo qual é conhecido como "Poeta dos Escravos". (Nota da IHU On-Line)
[12] Poema O povo ao poder: Quando nas praças s'eleva/Do povo a sublime voz.../Um raio ilumina a treva/O Cristo assombra o algoz.../Que o gigante da calçada/Com pé sobre a barricada/Desgrenhado, enorme, e nu,/Em Roma é Catão ou Mário,/É Jesus sobre o Calvário,/É Garibaldi ou Kossuth. A praça! A praça é do povo/Como o céu é do condor/É o antro onde a liberdade/Cria águias em seu calor./ Senhor!... pois quereis a praça?/Desgraçada a populaça/Só tem a rua de seu.../Ninguém vos rouba os castelos/Tendes palácios tão belos.../Deixai a terra ao Anteu. Na tortura, na fogueira.../Nas tocas da inquisição/Chiava o ferro na carne/Porém gritava a aflição./Pois bem... nest'hora poluta/Nós bebemos a cicuta/Sufocados no estertor;/Deixai-nos soltar um grito/Que topando no infinito/Talvez desperte o Senhor. A palavra! vós roubais-la/Aos lábios da multidão/Dizeis, senhores, à lava/Que não rompa do vulcão./Mas qu'infâmia! Ai, velha Roma,/Ai, cidade de Vendoma,/Ai, mundos de cem heróis,/Dizei, cidades de pedra,/Onde a liberdade medra/Do porvir aos arrebóis./Dizei, quando a voz dos Gracos/Tapou a destra da lei?/Onde a toga tribunícia/Foi calcada aos pés do rei?/Fala, soberba Inglaterra,/Do sul ao teu pobre irmão;/Dos teus tribunos que é feito?/Tu guarda-os no largo peito/Não no lodo da prisão. No entanto em sombras tremendas/Descansa extinta a nação/Fria e treda como o morto./E vós, que sentis-lhe o pulso/Apenas tremer convulso/Nas extremas contorções.../Não deixais que o filho louco/Grite "oh! Mãe, descansa um pouco/Sobre os nossos corações". Mas embalde... Que o direito/Não é pasto do punhal./Nem a patas de cavalos/Se faz um crime legal.../Ah! não há muitos setembros!/Da plebe doem os membros/No chicote do poder,/E o momento é malfadado/Quando o povo ensanguentado/Diz: já não posso sofrer. Pois bem! Nós que caminhamos/Do futuro para a luz,/Nós que o Calvário escalamos/Levando nos ombros a cruz,/Que do presente no escuro/Só temos fé no futuro,/Como alvorada do bem,/Como Laocoonte esmagado/Morreremos coroado/Erguendo os olhos além. Irmãos da terra da América,/Filhos do solo da cruz,/Erguei as frontes altivas,/Bebei torrentes de luz.../Ai! soberba populaça,/Rebentos da velha raça/Dos nossos velhos Catões,/Lançai um protesto, ó povo,/Protesto que o mundo novo/Manda aos tronos e às nações. (Nota da IHU On-Line)
[13] Cassiano Ricardo Leite (1895-1974): jornalista, poeta e ensaísta brasileiro. Representante do modernismo de tendências nacionalistas. Foi o fundador do grupo da Bandeira, reação de cunho social-democrata a estes grupos, cuja obra foi se transformando de acordo com as novas tendências dos anos 1950 e tendo participação no movimento da poesia concreta. (Nota da IHU On-Line)
[14] Poema Sala de espera: Ah, os rostos sentados numa sala de espera./Um “Diário Oficial” sobre a mesa./Uma jarra com flores./A xícara de café, que o contínuo vem, amável, servir aos que esperam a audiência marcada./Os retratos em cor, na parede, dos homens ilustres que exerceram, já em remotas épocas, o manso ofício de fazer esperar com esperança./E uma resposta, que será sempre a mesma: só amanhã./E os quase eternos amanhãs daqueles rostos sempre adiados e sentados numa sala de espera./ Mas eu prefiro é a rua./A rua em seu sentido usual de “lá fora”./Em seu oceano que é ter bocas e pés para exigir e para caminhar./A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./Rua do homem como deve ser: transeunte, republicano, universal./Onde cada um de nós é um pouco mais dos outros do que de si mesmo./Rua da procissão, do comício, do desastre, do enterro./Rua da reivindicação social, onde mora o Acontecimento./A rua! Uma aula de esperança ao ar livre./ (Nota da IHU On-Line)
[15] Roberto DaMatta (1936): antropólogo brasileiro, considerado um dos grandes nomes das Ciências Sociais brasileiras. Autor de diversas obras de referência na Antropologia, Sociologia e Ciência Política, como Carnavais, Malandros e Heróis, A casa e a rua e O que faz o brasil, Brasil?. Confira a entrevista que concedeu à edição 184 daRevista IHU On-Line, de 12-06-2006, intitulada Ritual, drama e jogo, disponível para download emhttp://migre.me/QYuy. (Nota da IHU On-Line)
[16] Marshall Berman (1940-2013): escritor e filósofo estadunidense de tendência marxista. Era também professor de Ciência Política do City College of New York e do Graduate Center da City University of New York, onde ensinava Filosofia Política e Urbanismo. Sua obra mais conhecida é Tudo que é sólido desmancha no ar, cujo título alude a uma frase do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. O livro é uma história crítica da modernidade, constituindo-se de análises críticas de vários autores e suas épocas — desde o Fausto de Goethe, passando pelo Manifesto de Marx e Engels, pelos poemas em prosa de Baudelaire e pela ficção de Dostoievski, até as vanguardas artísticas do século XX. (Nota da IHU On-Line)
[17] Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000 publicou o livro-manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com Michael Hardt. Em seguida, publicou Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005), também com Michael Hardt — sobre esta obra, publicamos um artigo de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. O livro é uma espécie de continuidade da obra anterior e foi apresentado na primeira edição do evento Abrindo o Livro, promovido pelo IHU em abril de 2003, no mesmo ano em que Negri esteve na América do Sul em sua primeira viagem internacional após décadas entre o cárcere e o exílio. Atualmente, após a suspensão de todas as acusações contra ele, definitivamente liberado, vive entre Paris e Veneza e escreve para revistas e jornais do mundo inteiro. (Nota da IHU On-Line)
[18] Ferdinand Lassalle (1825-1864): considerado um precursor da social-democracia alemã. Foi contemporâneo de Karl Marx, com quem esteve junto durante a Revolução Prussiana de 1848. Combativo e ativo propagandista dos ideais democráticos. Proferiu conferência em 1863, que serviu de base para um livro importante para o estudo do direito constitucional (editado e traduzido para o português com o nome "A Essência da Constituição"). (Nota da IHU On-Line)
[19] Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): historiador brasileiro, também crítico literário e jornalista. Entre outros, escreveu Raízes do Brasil, de 1936. Obteve notoriedade através do conceito de “homem cordial”, examinado nessa obra. A professora Dr.ª Eliane Fleck, do PPG em História da Unisinos, apresentou, no evento IHU Idéias, de 22-08-2002, o tema O homem cordial: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e no dia 8-05-2003, a professora apresentou essa mesma obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, concedendo, nessa oportunidade, uma entrevista aIHU On-Line, publicada na edição nº 58, de 05-05-2003, disponível em http://bit.ly/152MP1v. Sobre Sérgio Buarque de Holanda, confira, ainda, a edição 205 da IHU On-Line, de 20-11-2006, intitulada Raízes do Brasil, disponível para download em http://bit.ly/SMypxY (Nota da IHU On-Line)
[20] Raymundo Faoro ou Raimundo Faoro (1925-2003): Jurista, sociólogo, historiador e cientista político brasileiro. Suas obras se propõe a fazer uma análise da sociedade, da política e do Estado brasileiro. Em seu livro mais clássico, Os Donos do Poder (Porto Alegre: Editora Globo, 1958), abordou conceitos de patrimonialismo brasileiro, onde o contextualizava a partir da colonização portuguesa. Raymundo foi membro da Academia Brasileira de Letras e Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) (Nota da IHU On-Line).
[21] Victor Nunes Leal (1914—1985): jurista brasileiro, ministro do Supremo Tribunal Federal. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ em 1936. Colaborou com Pedro Baptista Martins na elaboração do Código de Processo Civil de 1939. (Nota da IHU On-Line)
[22] Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e socióloga alemã, de origem judaica. Foi influenciada por Husserl,Heidegger e Karl Jaspers. Em consequência das perseguições nazistas, em 1941, partiu para os EUA, onde escreveu grande parte das suas obras. Lecionou nas principais universidades deste país. Sua filosofia assenta numa crítica à sociedade de massas e à sua tendência para atomizar os indivíduos. Preconiza um regresso a uma concepção política separada da esfera econômica, tendo como modelo de inspiração a antiga cidade grega. Entre suas obras, citamos:Eichmann em Jerusalém - Uma reportagem sobre a banalidade do mal (Lisboa: Tenacitas. 2004) e O Sistema Totalitário (Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1978). Sobre Arendt, confira as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12-2005, sob o título Hannah ArendtSimone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XX, disponível para download em http://bit.ly/qMjoc9 e a edição 206, de 27-11-2006, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível para download em http://bit.ly/rt6KMg. Nas Notícias Diárias de 01-12-2006 você confere a entrevista Um pensamento e uma presença provocativos, concedida com exclusividade porMichelle-Irène Brudny em 01-12-2006, disponível para download em http://bit.ly/o0pntA. (Nota da IHU On-Line)
[23] Lei da anistia: é a denominação popular da Lei nº 6.683, promulgada pelo presidente Figueiredo em de 28 de agosto de 1979, após uma ampla mobilização social, ainda durante o regime militar. Na primeira metade dos anos 1970, surgiu o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Therezinha Zerbini. Em 1978 foi criado, no Rio de Janeiro, o Comitê Brasileiro pela Anistia, congregando várias entidades da sociedade civil, com sede na Associação Brasileira de Imprensa. A luta pela anistia aos presos e perseguidos políticos foi protagonizada por estudantes, jornalistas e políticos de oposição. No Brasil e no exterior foram formados comitês que reuniam filhos, mães, esposas e amigos de presos políticos para defender uma anistia ampla, geral e irrestrita a todos os brasileiros exilados no período da repressão política. (Nota da IHU On-Line).
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/526174-a-constituicao-e-a-construcao-de-direitos-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior

domingo, 1 de dezembro de 2013

Artigo - Código Brasileiro de Processo Constitucional - Douglas Zaidan e Eduardo Borges

Artigo muito interessante no site "Crítica Constitucional" sobre a pertinência de um Código Brasileiro de Processo Constitucional, escrito por Douglas Zaidan e pelo sempre amigo e membro deste núcleo Eduardo Borges.

------


Douglas Zaidan
Doutorando em Direito/UnB
Eduardo Borges
Mestrando em Direito/UnB

Recentemente o Conselho Federal da OAB publicou portaria que constitui uma comissão especial de juristas para discussão de um Código Brasileiro de Processo Constitucional, uma proposta lançada há quase quatro anos em texto publicado na Folha de São Paulo, cuja autoria é dos constitucionalistas Paulo Bonavides e Paulo Lopo Saraiva, ambos integrantes da comissão.
O ato publicado não disciplina a forma de trabalho da comissão nem define cronograma das atividades, mas segue o propósito de estabelecer “o regramento sistemático das ações constitucionais de defesa de direitos e de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos, em sintonia com as conquistas jurídicas contemporâneas”, conforme afirmação do Presidente da Ordem no seu discurso de posse.
Entre os argumentos levantados em defesa do Código, Bonavides e Saraiva citaram em geral as mesmas vantagens dos grandes códigos surgidos no século XIX, e que teriam sido atestadas pela história da vitória do racionalismo iluminista contra o arcaísmo feudal, expressada nas aspirações “de unidade, de sistema, de regra lógica, de clareza, de segurança, de ordem, de racionalidade e de certeza”. Aspirações que não contempladas nas leis esparsas que regulam o contencioso de constitucionalidade, como as Leis n. 9.868/99 e n. 9.882/99, e os instrumentos processuais de defesa de direitos individuais, como as Leis n. 8.038/90 e n. 12.016/2009.
No mesmo sentido, André Ramos Tavares e Domingos García Belaunde, em pequeno texto publicado na Folha, defenderam a proposta. Com um código, os processos constitucionais se desenvolveriam “mais adequadamente, com maior intensidade e clareza de seu sentido real, colocando o Direito a serviço dos direitos humanos”, como se Constituições e tratados internacionais já não o fizessem.
Assim, rechaçam quaisquer semelhanças entre a proposta de codificação e as  grandes codificações do final do século XVIII e do início do século XIX, “que apenas exprimiam a realização do projeto típico do liberalismo e da ideologia das classes dominantes”. Mas, afinal, o que representaria um código de processo constitucional hoje?
Os posicionamentos sobre a codificação (aqui e aqui), majoritariamente a seu favor, prendem-se a razões não exatamente inéditas, ao reiterar os possíveis benefícios proporcionados pela sistematização, mas parecem perder de vista a oportunidade criada pelos debates: a (re)avaliação da crescente, porém nada democrática, concentração dos mecanismos de controle de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
As manifestações desse movimento e suas consequências nem de longe constituem novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Vários eventos políticos fizeram-se refletir no modo de compreensão da função da jurisdição constitucional e do papel do Supremo Tribunal Federal no arranjo das instituições incumbidas de interpretar a Constituição. Todavia, sua gênese autoritária é pouco lembrada nas análises sobre as modificações no modelo brasileiro de controle de constitucionalidade. Então, se um Código de Processo Constitucional deve ser elaborado, como pretende a OAB e parte da doutrina constitucional, nada mais apropriado do que visitar a evolução de uma parte relevante do modelo vigente.
A Emenda Constitucional n° 16/1965
O primeiro passo relevante em direção a um modelo concentrado foi dado com a Constituição de 1934, que incorporava mecanismos de intervenção da União sobre os Estados-membros, caso violados princípios constitucionais sensíveis. A “declaração de inconstitucionalidade para evitar a intervenção federal” condicionava a eficácia da lei interventiva à declaração de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, pela primeira vez em sua história institucional, a Corte tornou-se competente para aferir a constitucionalidade de lei em tese.
Apesar da Constituição determinar, em seu artigo 38, ser “vedado ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente políticas”, a representação interventiva configurava peculiar fórmula judicial de composição dos conflitos federativos que tinha o condão de transferir uma questão essencialmente política ao campo jurídico. A judicialização do conflito, por mais que a decisão fosse técnica, revela que um papel político foi efetivamente delegado ao Poder Judiciário.
Quase 30 anos depois, em 1965, a Emenda Constitucional n° 16 introduziu na Constituição Federal de 1946 a representação de inconstitucionalidade. Sob manejo exclusivo do Procurador-Geral da República, o STF decidiria sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo, seja federal ou estadual.
O âmbito material da via de ação foi ampliado e passou a abarcar os direitos objetivos, não mais limitando-se à proteção dos princípios sensíveis. “Toda lei de nosso ordenamento jurídico (…) poderia ser objeto de um exame de constitucionalidade, mediante uma ação direta ou específica, destinada exclusivamente a liquidar o ponto controverso”[1].
Mas a instituição do controle abstrato, de uma vez por todas, deu-se como ato contínuo da reforma judiciária promovida pelo Ato Institucional n. 02[2], de 27 de outubro de 1965 – um dos atos mais marcantes na institucionalização do Golpe Militar de 1964.
Em suma, o Ato Institucional n. 02 aumentou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal de onze para dezesseis; recriou a justiça federal, estabelecendo que os juízes federais e os juízes do extinto Tribunal Federal de Recursos seriam nomeados pelo Presidente da República; excluiu de apreciação judicial os atos praticados pelo “Comando Supremo da Revolução e pelo Governo Federal”, assim como os atos de cassação de mandato ou impedimento de parlamentares, governadores e prefeitos; e, por fim, ampliou a competência da Justiça Militar para estendê-la aos civis na repressão aos crimes “contra a segurança nacional ou as instituições militares”.
As razões apresentadas à época pelo Ministro da Justiça, Juracy Montenegro Magalhães, no projeto de emenda constitucional nº 6 , que deu origem à EC n. 16/1965, manteve o tom autoritário da reforma do Poder Judiciário conduzida pelos militares, embora agora fossem ouvidas uma comissão de juristas e algumas entidades representativas da magistratura e da advocacia. Um dos pontos frisados na justificativa era a preocupação com o acúmulo de processos a exigir decisão do Supremo Tribunal Federal. Precisou, portanto, a comissão orientar-se pela “necessidade, realmente imperiosa, de apressar a solução dos litígios nas instâncias superiores” – conforme exposto no projeto, que chegou a demonstrar a sobrecarga com estatísticas:
“Na alta Côrte os recursos extraordinários já passam de 58.000; os agravos, de 35.000; os mandados de segurança, de 15.000; os habeas corpus, de 42.000; um acervo de 150.000 causas! Um esfôrço despendido no julgamento delas excede as possibilidades humanas, ao atingirem a cifra anual (como em 1964) de 7.849 feitos. Terá tocado a cada Ministro relator relatar cêrca de oitocentas causas; e, dividindo-se êsse número pelos dias – menos de trezentos – concluiremos que a média diária para o estudo individual foi de três processos, nas escassas horas disponíveis antes e depois das sessões. Os dados movem à surpresa, ao refletirmos que, no período de um ano, a produção total da Côrte Suprema dos Estados Unidos vai pouco além de mil decisões.”[3]
A representação de inconstitucionalidade, cuja instituição representou a principal inovação pela reforma judiciária promovida pelo AI n. 2, apoiou-se especialmente em dois argumentos: suplementar a representação interventiva, em cujo trâmite o Supremo Tribunal Federal desempenhava o papel de “guardião da federação” e a assegurar maior eficácia ao sistema de controle, sob o signo da economia processual.
Seu mérito seria de “facultar desde a definição da controvérsia constitucional sobre leis novas, com economia para as partes, formando precedente que orientará o julgamento dos processos congêneres”, com procedimento idêntico ao das representações interventivas, previstas para os casos de ofensa aos princípios constitucionais previstos no art. 7°, VII da Constituição Federal de 1946, seguindo uma lógica centralizadora[4] do processo constitucional.
A discussão do projeto de emenda constitucional n. 6 pelo Congresso Nacional restou prejudicada pelo exíguo tempo de seu trâmite. Como o AI n. 2 tinha alterado o processo legislativo para emendas encaminhadas pelo Presidente da República, fixando-lhe o prazo de 30 dias, não houve tempo hábil para a apreciação e o debate em torno das inovações, que implicaram uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade.
A aprovação da proposta pela Comissão Mista deu-se no dia 16 de novembro de 1965, ou seja, apenas 12 dias após o envio do projeto de emenda. Embora o Congresso tenha recusado conferir efeitos erga omnes à declaração de inconstitucionalidade pronunciada pelo Supremo Tribunal Federal, como previsto inicialmente, a Emenda n. 16/65 representou um passo fundamental no sentido de concentrar o modelo de fiscalização das normas.
A partir daquele momento o controle de constitucionalidade tornou-se híbrido, reforçando as discussões acerca do papel do Tribunal na apreciação em tese da compatibilidade das leis frente à Constituição, sem que fosse promovida qualquer reforma ou adaptação no tradicional modelo concreto e difuso.
O controle concentrado 48 anos depois
De 1965 em diante, assistiu-se quase que passivamente ao aprofundamento da concentração de competências em torno do STF. A Constituição de 1988 ampliou o rol de agentes legitimados a postular a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual perante a Corte – atribuição que, até então, era confiada exclusivamente ao Procurador-Geral da República.
Além disso, foram instituídos instrumentos outros de controle, sejam eles voltados ao exercício do controle de constitucionalidade por via direta, como a ação declaratória de constitucionalidade e arguição de descumprimento de preceito fundamental; para a efetivação de direitos fundamentais contra omissões dos poderes instituídos na regulamentação do seu exercício, como o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão; para a preservação da competência e autoridade das decisões da Corte, por via incidental, como a reclamação constitucional.
Passado quase meio século e incorporadas todas as modificações, o controle concentrado de constitucionalidade provavelmente impõe-se como o principal modelo de nossa jurisdição constitucional, enquanto o modelo de controle difuso absorveu as quase infinitas demandas de massa, em um cenário em que juízos de primeira instância e tribunais estaduais passaram, cada vez mais, a atuar como “cartórios certificadores” dos precedentes judiciais dos tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal.
Porém, qual o significado dessa caminhada resoluta em direção ao modelo concentrado? Caso lançado um olhar crítico a essa tendência e aos argumentos que lhe proveram fundamentação, já com o Ato Institucional n. 2, e antepô-los ao complexo sistema de controle jurisdicional hoje existente, é razoável concluir que foi construído um “castelo de areia” da segurança jurídica e economia processual.
Tem-se que tanto as significativas modificações realizadas ainda no regime militar, como a representação de inconstitucionalidade e a inclusão da representação interpretativa, quanto as alterações posteriores à Constituição de 1988, a exemplo da EC nº 3/93, que inseriu a ADC e o efeito vinculante; da Lei nº 9.868/99 e a interpretação conforme, e, por último, a EC nº 45/2004, que trouxe a repercussão geral e as súmulas vinculantes, sempre estiveram apoiadas no discurso do ganho de eficiência ao sistema de controle, prestando-se em ultima instância à centralização da interpretação constitucional no âmbito do STF, não deixando de produzir consigo considerável perda para a democratização do acesso à justiça, no seu sentido qualitativo e não quantitativo.
O cenário
Todo esse movimento de adensamento de poder no vértice da organização judiciária brasileira, no entanto, não tem produzido os resultados prometidos. Mesmo quando a questão é tomada do ponto de vista quantitativo, as análises dos números envolvidos tem revelado grande incongruência entre discurso e práticas judiciais a ele associadas.
Apenas a título comparativo, se, no ano de 1965, decidir 7849 processos era considerado para além das “possibilidades humanas” do Supremo, resta imaginar a perplexidade causada ao verificar que nos últimos seis anos – já incluído 2013, com atualização até 20/11 –, a média de decisões proferidas anualmente chegou a 101.898, conforme tabela disponível no site do STF:
Tipo de decisão2.0082.0092.0102.0112.0122.013
COLEGIADA19.69716.07911.33313.09612.08812.457
MONOCRÁTICA109.12786.78298.34789.30377.74165.098
NÃO INFORMADO10113216
Soma:128.824102.871109.681102.41290.04577.555
Fonte: STF (www.stf.jus.br)          
O fato é que a redução de demanda e o aperfeiçoamento da segurança jurídica, principais elementos do discurso de justificação da criação e ampliação do controle concentrado, não tem funcionado na prática. Além disso, alguns dos instrumentos instituídos para melhorar o funcionamento do controle difuso, mas que reforçam a tendência centralizadora do STF, também tem apresentado graves problemas.
É o caso do preocupante desempenho do sistema da repercussão geral dos recursos extraordinários, já tratado aqui no blog em texto de Fábio Almeida, que demonstrou uma perda de eficiência de 42% (até dezembro de 2012) em relação ao modelo de processamento de recursos anterior. Além da criação das súmulas vinculantes, cuja utilização parece esquecer que a edição do enunciado importa em novo texto, cuja aplicação depende de interpretação, abrindo novas possibilidades de acesso direto à jurisdição do STF com o ajuizamento da reclamação constitucional[5].
Já do ponto de vista qualitativo, nota-se que a defesa dos direitos fundamentais também não tem sido potencializada pelo incremento da utilização do controle concentrado. Esse é o diagnostico da pesquisarealizada pela Sociedade Brasileira de Direito Público, que analisou 831 ações propostas contra atos do Poder Executivo federal. E mais recentemente, a pesquisa coordenada pelos professores da Universidade de Brasília, Alexandre Araújo Costa e Juliano Benvindo: “A quem interessa o controle concentrado de constitucionalidade? Um perfil das decisões de procedência em ADIs”, que abrange todas as ADIs ajuizadas entre outubro de 1988 e dezembro de 2012, em fase de conclusão, cujo relatório preliminar se encontra aqui.
Muitas são as possibilidades de análise que os dados oferecem, especialmente quando as atenções se dirigem à atuação dos legitimados para a propositura das ações (art. 103, CF/1988). Para a avaliação aqui proposta, entretanto, dois pontos merecem destaque: 1) o restritivo entendimento jurisprudencial do STF acerca da legitimação ativa (pertinência temática) tem potencializado uma espécie de controle que privilegia a defesa de interesses eminentemente institucionais e corporativos; 2) entre os fundamentos acolhidos pela Corte para declarar a inconstitucionalidade há uma forte prevalência de questões formais ou de organização estatal (regime federativo). Em ambos os casos, nota-se que o tema dos direitos fundamentais aparece de modo tangencial[6], geralmente relacionado à garantia de interesses corporativos de carreiras públicas ou grupos econômicos.
Esse cenário que se apresenta para a discussão do Código de Processo Constitucional não pode deixar em segundo plano uma avaliação institucional do comportamento STF, ultimamente evidenciado pela pretensão de uma ampla vinculação normativa de fatos valorados sob o seu estrito racionalismo auto-referente, cujo resultado tem representado pouco para a garantia dos direitos fundamentais.
Os limites do compromisso do Tribunal na defesa dos direitos fundamentais e na manutenção do pacto pela “governabilidade” será colocado mais uma vez à prova com o julgamento sobre a responsabilidade de bancos pelos prejuízos sofridos por poupadores em razão dos planos Bresser, Verão, Collor I e II.
A propósito, vale a pena lembrar o julgamento da ação declaratória de constitucionalidade n. 9, em que decidida a constitucionalidade da Medida Provisória n. 2152-2, referente ao “apagão” e à não-devolução dos valores arrecadados para além das metas fixadas de tarifa especial ou sobretarifa imposta ao consumo de energia elétrica. Como posto pela Ministra Ellen Gracie ao conceder medida cautelar ao pedido da União, “a urgência e a relevância são patentes, pois nenhum governo adotaria as medidas altamente impopulares se não fosse compelido pela inapelabilidade dos fatos”. Parece claro que a decisão norteou-se por uma avaliação de conveniência política, ao invés de preocupar-se com o resguardar dos princípios jurídicos.
Julgamentos políticos pelas Cortes Constitucionais não são, todavia, uma jabuticaba. Tanto o julgamento do “apagão” quanto o julgamento dos credores refletem a tese de Ran Hirschl sobre o emergir da juristocracia: reformas constitucionais levadas a cabo mundo afora no pós-Segunda Guerra mundial tiveram o condão de subtrair dos agentes políticos democraticamente escolhidos o poder político e transferi-lo a magistrados não sujeitos a accountability do voto popular[7].
Pensando no presente cenário institucional, um código de processo constitucional que viesse somente para consolidar a legislação esparsa já existente representaria nada mais do que um outro passo em direção à supremocracia, tal como formulada por Oscar Vilhena Vieira[8], e da juristocracia, tal como tratada por Ran Hirschl.
Para finalizar, o registro mais importante: para além da “sistematização” das leis esparsas, a oportunidade que se abre com a discussão do código pode ser o início da construção de um modelo que, afora seja capaz de reduzir a complexidade e fornecer respostas, não crie mais mecanismos de cristalização jurisprudencial em descompasso com a realidade. Afinal, tudo que a jurisdição brasileira não precisa mais é da sobreposição de uma razão pautada pela convergência entre o pragmatismo na redução da carga de trabalho e o interesse restrito às questões corporativas ou de política partidária, o que tornaria ainda mais escassas as possibilidades de realização dos direitos fundamentais em situações concretas.

[1]BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25 ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 330.
[2]A redação da ementa do AI n° 02/1965 dizia o seguinte: “Mantém a Constituição Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as alterações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da Revolução de 31.03.1964, e dá outras providências”, apresentando uma curiosa apropriação do conceito de poder constituinte se comparada à forma tradicionalmente trabalhada pela teoria constitucional, o que por si só merece uma análise mais cuidadosa.
 [3]Presidência da República. Mensagem nº 19, de 1965. Encaminha o Projeto de Emenda Constitucional nº 6 ao Congresso Nacional.
 [4]O art. 21 da PEC nº 6/1965 chegou a prever a alteração do art. 64, retirando do Senado Federal a competência para suspender a execução da lei ou ato declarado inconstitucional, dispondo que caberia à Casa legislativa apenas “fazer publicar no Diário Oficial e na Coleção de Leis, a conclusão do julgado que lhe fôr comunicado”, o que foi rejeitado no parecer da Comissão Mista no Congresso. A proposta resgatada recentemente por Gilmar Mendes na Rcl nº 4.335/AC.
 [5] O considerável aumento do número de reclamações após o início da vigência da Lei n° 11.417/2006, pode ser uma evidência empírica desse diagnóstico. As estatísticas divulgadas pelo STF indicam o julgamento de 906 reclamações no ano de 2006, número que cresceu para 1.431 em 2007; 2.345 em 2008 e 3.521 em 2009.
[6] Essa constatação inclusive motiva a classificação das questões tratadas no controle concentrado entre fundamentais (direitos fundamentais e estrutura básica do Estado) e funcionais (política cotidiana, disputas sobre espaços de poder, demandas setoriais e corporativas), com uma forte prevalência numérica para as últimas. Num quadro como esse, o alerta é para que o esforço do STF e o peso considerado sobre as questões fundamentais não seja inadvertidamente transferido para as demandas funcionais. Cf. SUNFELD, Carlos Ari & PINTO, Henrique Moita (2012). “Três Desafios para Melhorar a Jurisdição Constitucional Brasileira” In: Jurisdição Constitucional no Brasil. São Paulo: Malheiros, p. 47-51.
[7] HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2004. p. 1.
[8] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV 8, São Paulo, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008.

http://www.criticaconstitucional.com/o-codigo-da-vez/