segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Livro - Como decidem as Cortes? para uma crítica do direito (brasileiro) - José Rodrigo Rodriguez

Saiu o livro "Como decidem as Cortes? para uma crítica do direito (brasileiro)" do Prof. José Rodrigo Rodriguez. A partir de pesquisas empíricas sobre jurisprudência, o livro faz um amplo diagnóstico do pensamento jurídico no Brasil e procura criticar nosso direito partindo do pressuposto de que ele forma padrões de julgamento de maneira diferente do modelo europeu (lógico-conceitual) e do modelo anglo-saxônico (baseado em precedentes). A partir desta análise o livro enfrenta temas como do formalismo jurídico, segurança jurídica e juridificação para apontar alternativas que contribuam para aperfeiçoar nossas instituições.

http://www.editora.fgv.br/?sub=produto&id=936


Sumário

 

Agradecimentos

 

Introdução

Razões da crítica

 

Capítulo 1

Existe direito no Brasil? A cabrocha e o magistrado

 

Capítulo 2

Como decidem as cortes brasileiras? Sobre argumento de autoridade e justificação

 

Capítulo 3

Como pensam os juristas? Sobre formalismo e naturalização conceitual

 

Capítulo 4

Critérios da crítica. Zonas de autarquia e controle do poder

 

Capítulo 5

Judicialização da política? Sobre a naturalização da separação dos poderes (I), com Marcos Nobre

 

Capítulo 6

Insegurança jurídica? Sobre a naturalização da separação dos poderes (II)

 

Referências

 

Aviso ao leitor


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Entrevista - Adriano Pilatti (PUC-Rio)

Entrevista imperdível do Prof. Adriano Pilatti da PUC-Rio. Uma análise profunda e crítica sobre os movimentos de protesto que tem acontecido e a incapacidade dos governantes e instituições tradicionais de entenderem e canalizarem o grito das ruas. Uma entrevista que se enriquece com análise histórica sobre a forma como se construiu a democracia ocidental e a separação entre os poderes; a análise filosófica e institucional sobre as massas, seu poder de expressão, participação e transformação.

"As representações dos sistemas políticos representativos, dos sistemas eleitorais e partidos políticos estão em crise em todo o mundo democrático, e isso remonta a um problema de origem, porque originariamente a representação política moderna, tal como concebida nos Estados Unidos no pensamento dos federalistas e na elaboração da Constituição de 1787, foi pensada contra a democracia."

"A criminalização dos movimentos sociais nada mais é do que a dimensão coletiva da criminalização da vida dos pobres que permanece até hoje. O regime militar não acabou nas periferias, mudou apenas a cor do uniforme. Esse é o grande desafio que temos de perseguir: descriminalizar a vida dos pobres, porque a partir daí seus movimentos serão descriminalizados com maior facilidade."

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“O regime militar não acabou nas periferias. Mudou apenas a cor do uniforme”. Entrevista especial com Adriano Pilatti

“As possibilidades estão aí nos corpos e mentes jovens, potentes e indomáveis que tomaram as ruas e reatualizaram a ideia de ação direta, a ideia maquiaveliana dos tumultos que produzem boa ordem, dos conflitos que criam as instituições da liberdade”, ressalta o jurista e cientista político.
Foto: http://bit.ly/175dOsX
“A criminalização dos movimentos sociais é pura e simplesmente a continuidade dessa incapacidade das elites brasileiras de aceitar a ação política que vem de baixo. Os primeiros movimentos sociais criminalizados foram os quilombos e, assim como os quilombolas eram caçados, hoje os dissidentes pobres também o são", afirma o cientista político Adriano Pilatti, que concedeu entrevista pessoalmente à IHU On-Line quando esteve na Unisinos a convite do IHU.
Segundo ele, "esses meninos que tomaram as ruas do Rio de Janeiro e que não querem ser traficantes, nem milicianos, nem policiais, mas também não querem ser “escravos remunerados” em sórdidos ambientes de trabalho. Eles querem ser cidadãos e são satanizados pura e simplesmente porque põem uma máscara no rosto, independentemente do que fizerem ou deixarem de fazer. O que poucos sabem é que, para muitos deles, que vivem em territórios onde os direitos civis não chegaram, territórios controlados por milícias, traficantes, etc., a máscara é um recurso de autodefesa sem o qual seriam perseguidos ao retornarem para casa, ou perderiam seus empregos, porque muitos trabalham para os seus territórios de origem, onde os direitos civis não chegaram. O enunciado ‘se usa máscara, então faz vandalismo’ é falso”.
Em seu ponto de vista, essa criminalização não é nada mais do que “a dimensão coletiva da criminalização da vida dos pobres que permanece”. E dispara: “O regime militar não acabou nas periferias, mudou apenas a cor do uniforme”.Pilatti critica a postura de inúmeros intelectuais brasileiros, ressentidos e irritados porque não conseguem mais encaixar a realidade em seus “joguinhos de armar conceituais”. Além disso, reflete que, frente a um sistema de poder “que nega e trai a vida a todo instante, a virtude fundamental é desobedecer, é duvidar do tirano, é rir do poder. É não aceitar essa falsa majestade dos homens e mulheres de capa preta”.
Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).
Ele proferiu a conferência A Constituição no Supremo Tribunal Federal: a (des)construção da democracia brasileiraem 02-10-2013, no Seminário Constituição 25 Anos: República, Democracia e Cidadania, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Confira a entrevista.
Foto: http://bit.ly/1h317sO
IHU On-Line - Quais são os principais desafios e impasses da democracia no Brasil?
Adriano Pilatti – Primeiramente, penso que é preciso superar a plurissecular tradição autoritária não só do Estado como da sociedade brasileira. Nós nascemos, crescemos e amadurecemos sob o signo do autoritarismo estatal e social, do autoritarismo de Estado e de classe. Esses males de origem, para citar uma expressão do Manoel Bomfin, ainda produzem efeitos terríveis na sociedade brasileira. Não entendemos o padrão de violência policial que temos no Brasil sem lembrar que tivemos 388 anos de escravismo e de domínio brutal sobre os corpos produtivos. Não conseguimos entender a extrema dificuldade que tem o patronato brasileiro de olhar para o trabalhador e ver nele um sujeito de direitos sem remontar, igualmente, ao período escravista. A recente extensão dos direitos mínimos de proteção ao trabalho às empregadas domésticas revelou bem o quanto a mentalidade escravocrata está profundamente arraigada não apenas nas classes dominantes, mas também nas classes médias e na pequena burguesia.
Demofobia
As representações dos sistemas políticos representativos, dos sistemas eleitorais e partidos políticos estão em crise em todo o mundo democrático, e isso remonta a um problema de origem, porque originariamente a representação política moderna, tal como concebida nos Estados Unidos no pensamento dos federalistas e na elaboração da Constituiçãode 1787, foi pensada contra a democracia. Os federalistas diziam querer uma república representativa na América para não ter democracia. A demofobia explicava a necessidade de construir um sistema em que o povo, sobretudo os pobres, os pequenos proprietários, os despossuídos e desvalidos não exercitassem diretamente o poder. Essa era também a preocupação de Montesquieu , o aristocrata que pensa em um regime de separação de poderes tanto para superar o absolutismo monárquico quanto para prevenir a democracia e a anarquia. Então a representação foi feita contra a democracia tanto na Revolução Americana como na Revolução Francesa.
O que aconteceu é que, a partir de 1848, com o ciclo de revoltas operárias que sacode toda a Europa e repercute pelas áreas periféricas do mundo, a representação liberal burguesa, que era oligárquica e foi concebida para ser oligárquica, para garantir o poder de poucos e, sobretudo, o direito de propriedade, começa a se democratizar com as lutas pelo sufrágio universal masculino, primeiro, porque a classe operária também era machista, e depois com as outras minorias, as mulheres, as minorias étnicas, as minorias religiosas e assim por diante.
Mal necessário
Na verdade, a representação foi se democratizando, mas esse processo tem um limite e isso explica o mal-estar. “Fulano não me representa”, ou “sem partido” são expressões do mal-estar da representação. Expressões equivalentes têm sido bradadas por jovens desobedientes em AtenasRomaRio de JaneiroPorto AlegreMadriNova Iorque,Istambul e assim por diante.
Justamente porque na combinação de representação com desigualdade está o princípio de toda a corrupção. Se alguém exerce poder em nosso nome em uma sociedade desigual, o princípio da corrupção está estruturalmente instaurado. Então, o grande desafio da democracia hoje é repensar as instituições, de certo modo salvar a representação de si mesma, reduzir sua abstração, pois por muito tempo ainda ela será necessária. Mas é necessária na estrita medida em que possa servir à garantia da liberdade e dos direitos.
Hélio Pellegrino dizia que toda instituição democrática é mal necessário, na medida em que sirva à consecução de um bem. E o que se entende por bem na sociedade democrática? A liberdade, os direitos, o respeito à diversidade. Então, essa é a medida de toda a instituição, e o grande desafio da democracia hoje em todo o mundo é justamente fazer que com as instituições que servem à liberdade, à igualdade e aos direitos se deixem contagiar pelos movimentos que vêm de baixo, na sua diversidade, na sua multiplicidade.
Direita e esquerda continuam existindo, porque enquanto houver opressores oprimidos e exploradores explorados haverá direita e esquerda. Mas as posições de direita e esquerda variam conforme as questões. Uma instituição que, por exemplo, na questão da terra está à esquerda pode estar à direita na questão de costumes e vice-versa. Portanto, o grande desafio é não buscar a melhor forma de governo, como é a obsessão de todo pensamento político desde os gregos, mas buscar as melhores formas de liberação da potência produtiva, criativa, afetiva das pessoas.
IHU On-Line - No contexto das manifestações de junho ocorridas em nosso país, se discute a crise da democracia representativa. Quais são os limites e as possibilidades desse sistema no Brasil?
Adriano Pilatti - Os limites são postos justamente pelas correlações de força que marcam uma desigualdade profunda do ponto de vista econômico, do ponto de vista da própria veiculação da informação. As possibilidades estão aí nos corpos e mentes jovens, potentes e indomáveis que tomaram as ruas e reatualizaram a ideia de ação direta, a ideia maquiaveliana dos tumultos que produzem boa ordem, dos conflitos que criam as instituições da liberdade. Precisamos fazer um balanço de todos os males que as manifestações evitaram que fossem causados pelos poderes constituídos ao interesse público e aos interesses dos pobres em todo o Brasil, especialmente no Rio.
Os “decretos da multidão” assinados nas ruas em cada cartaz ou refrão impediram ou cancelaram reajustes de tarifa de transporte, restringiram a apropriação privada de espaços públicos, interromperam parcial e momentaneamente a remoção de comunidades inteiras para satisfazer os interesses da especulação imobiliária e dos megaeventos. Os pequenos prejuízos que um ou outro grupo de destrambelhados ajudou a produzir pelas ruas são insignificantes perto das decisões que favoreceram o interesse público, o que evidentemente não os legitima, mas permite dimensioná-los de modo mais adequado.
O que as manifestações que começaram em junho (e estão longe de terminar, pelo menos no Rio de Janeiro) demonstram é que a ação direta, os decretos da plebe, como se dizia na Roma antiga, contribuem para aprimorar as decisões públicas. Que o poder de veto das ruas é eventualmente necessário e algumas vezes indispensável. A grande possibilidade que está na rua é justamente a democracia direta, a abertura das decisões públicas à participação popular. Isso não é utópico, como os reacionários gostam de dizer. Não se trata de um fenômeno exótico restrito à Islândia, onde recentemente uma constituição foi elaborada “debaixo para cima”.
Limites da representação
Tive um aluno americano na década de 1990, na PUC-Rio, que dizia compreender nossa obsessão pela eleição presidencial, afinal de contas vivemos algumas ditaduras e aqui eleição presidencial era uma raridade. Os norte-americanos, ao contrário, tinham eleições contínuas desde o século XIX. Esse rapaz falou-me que, quando votava, o que menos lhe interessava eram os primeiros itens da cédula, dedicados à escolha dos representantes e governantes. O que interessava eram inúmeras políticas públicas de sua cidade ou de seu estado, que ele ajudava a decidir diretamente. Assim, a democracia brasileira precisa se abrir mais para a participação direta, porque o povo costuma errar menos do que o príncipe, o que Maquiavel havia descoberto examinando a experiência da Roma antiga. Há dias, o povo de Munique rejeitou em plebiscito a candidatura da cidade para a sede das Olímpiadas de Inverno de 2022. Aqui, com tal impacto, decisões continuam a ser tomadas na solidão dos gabinetes, nos convescotes entre políticos, burocratas e negocistas.
Cito dois exemplos contemporâneos no Brasil nos quais a positividade das discussões e decisões diretas fica muito clara. Dois projetos de lei que, paradoxalmente, no momento em que ainda estavam sendo definidos pelo poder executivo como anteprojetos, o do Código Florestal e do Marco Civil da Internet, foram abertos à consulta pública pela web. As comunidades científica, ambiental e todos os setores interessados puderam contribuir, discutir e apresentar sugestões.
Dois processos riquíssimos. Onde a coisa se perdeu e se oligarquizou? Quando foi para o Congresso. Assim, oCódigo Florestal recentemente aprovado é quase um Código Antiflorestal.
Marco Civil da Internet está chafurdando em interesses dos grandes grupos de comunicação e das teles, e parece não haver força capaz de detê-los. Faltou que o Congresso Nacional, que é a casa da representação, se abrisse à sociedade como o Executivo se havia aberto na mesma questão. Isso demonstra claramente os limites da representação e quais são as possibilidades que a ação direta oferece. Esses dois exemplos merecem ser estudados com muito cuidado. Eles também mostram que o povo é mais sábio que os príncipes.
IHU On-Line - A partir das conquistas oriundas da Constituição de 1988, quais foram os principais avanços em termos de aprofundamento dos direitos dos trabalhadores e das minorias marginalizadas? Por outro lado, como podemos compreender a criminalização dos movimentos sociais como o MST e as demandas das populações atingidas por barragens, por exemplo?
Adriano Pilatti - A Constituição representou grande avanço sistêmico. Foi chamada pelo saudoso presidente Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã, nome extremamente feliz, pois ela ajudou a instalar no país uma cultura dos direitos. Claro que todos esses direitos que ali foram consagrados resultaram de movimentos que já existiam, mas que se expandiram enormemente a partir do marco normativo que a Constituição representou. Quem viveu o período pré-1988 sabe disso. O direito do consumidor era uma utopia, assim como os direitos da criança e do adolescente, os direitos ambientais, as questões de gênero.
Lembro de um artigo do então senador Roberto Campos , o Bob Fields, o homem de confiança do Departamento de Estado norte-americano que ajudou a desencadear o golpe de 1964 e que foi o gestor de todas as maldades econômicas da primeira fase do regime militar. Ele escreveu um artigo indignado na Folha de S. Paulo, com um título falsamente rodrigueano e por isso pornográfico, “Elas gostam é de apanhar”, criticando o dispositivo constitucional que previa que caberia ao estado estabelecer meios para prevenir e reprimir o uso da violência no ambiente familiar. Hoje, felizmente, Roberto Campos seria execrado se dissesse isso, mas na época podia fazê-lo com alguma tranquilidade.
Em matéria ambiental é preciso destacar a constitucionalização que se dá em 1988 através dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e dos Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA).
Claro que a devastação ambiental ainda é chocante no Brasil, mas temos que pensar o que seria do patrimônio natural brasileiro sem a normatização num único artigo saudado pela UNESCO.
Ulysses Guimarães deu notícia desse expediente oficial da UNESCO no dia da promulgação da Constituição, saudando o Brasil por ter a constituição mais avançada em matéria ambiental. A autonomia do Ministério Público era também apenas um sonho republicano. A própria barreira de defesa que se estabeleceu em favor dos direitos individuais e coletivos dos trabalhadores tem resistido bem às investidas do conservadorismo brasileiro, queria retirá-los da Constituição e da CLT e até hoje não conseguiu.
Criminalização da pobreza
A criminalização dos movimentos sociais é pura e simplesmente a continuidade dessa incapacidade das elites brasileiras de aceitar a ação política que vem de baixo. Os primeiros movimentos sociais criminalizados no Brasil foram a Confederação dos Tamoios, os quilombos, e, assim como os índios e quilombolas eram caçados, hoje os dissidentes pobres também o são.
Entre eles, esses meninos que tomaram as ruas do Rio de Janeiro e que não querem ser traficantes, nem milicianos, nem policiais, mas também não querem ser “escravos remunerados” em sórdidos ambientes de trabalho. Eles querem ser cidadãos e são satanizados pura e simplesmente porque põem uma máscara no rosto, independentemente do que fizerem ou deixarem de fazer.
O que poucos sabem é que, para muitos deles, que vivem em territórios onde os direitos civis não chegaram, territórios controlados por milícias, traficantes, etc., a máscara é um recurso de autodefesa, sem o qual seriam perseguidos ao retornarem para casa, ou perderiam seus empregos, porque muitos trabalham para os seus territórios de origem, onde os direitos civis não chegaram. O enunciado “se usa máscara, então faz vandalismo” é falso.
A criminalização dos movimentos sociais nada mais é do que a dimensão coletiva da criminalização da vida dos pobres que permanece até hoje. O regime militar não acabou nas periferias, mudou apenas a cor do uniforme. Esse é o grande desafio que temos de perseguir: descriminalizar a vida dos pobres, porque a partir daí seus movimentos serão descriminalizados com maior facilidade.
IHU On-Line - Isso que o senhor está falando remete ao problema da colonização da política pela economia, não lhe parece?
Adriano Pilatti - Também, porque evidentemente o fator econômico é codeterminante nesses processos. Nós temos hoje um sistema econômico que é mundial. O que faz, portanto, com que os estados nacionais não tenham, por si mesmos, capacidade de enfrentar isso. Por que é que em todo o mundo os governos de esquerda com mais ou menos tempo acabam se desmoralizando? Não é porque os homens são maus ou porque os políticos são piores que os outros homens. É porque os estados nacionais já não têm capacidade de enfrentar um poder que é mundial. Isso opresidente Allende reconheceu no seu último discurso à Assembleia Geral da ONU, quando enunciou o que muito tempo depois diria Antonio Negri , um autor que hoje está sendo satanizado no Brasil.
Negri é uma espécie de “Viúva Porcina” das manifestações. Esses meninos que saíram às ruas do Brasil não leramNegri, mas as categorias negrianas ajudam a explicar o que está acontecendo: trata-se do império. Allendedenunciava a existência de um governo das grandes corporações mundiais. As soberanias nacionais estão esgotadas. O que significa que as formas de resistência têm também que se mundializar nesse eixo “cidade-mundo”. Desde os ciclos de 2010, 2011, antecedidos por acontecimentos como os de SeattleGênova e Chiapas, é isso que está se anunciando: a necessidade de uma resistência global, a necessidade de uma comunicação das lutas a partir das situações locais que são diversas, que são variáveis e múltiplas.
O que acontece em Porto Alegre não é o que acontece no Rio, em Salvador ou Belo Horizonte, embora tenham um substrato comum negativo, que é a mundialização das formas de comando e exploração capitalista, e um substrato comum positivo, a renovada capacidade de resistência da multiplicidade de singularidades que trabalham. Mas em cada cidade isso se apresenta com as respectivas especificidades socioeconômico-culturais.
É por isso que os partidos, como estruturas nacionais, burocráticas e de alguma forma domesticadas pelo poder se queixam tanto desses meninos. Os partidos os tratam como massa e querem pautar, organizar, disciplinar e dar a palavra de ordem. Esses meninos não aceitam isso, felizmente, pois não referendam nada que não venha de baixo, de uma maneira horizontal. Então, a padronização nacional ou mesmo regional das metas partidárias não alcança a variedade dos processos que está em curso em cada cidade, porque cada cidade tem uma forma diferente de expressar os mesmos problemas e que se revela o grande e insanável conflito entre o trabalho vivo e o trabalho morto, a que chamamos capital.
IHU On-Line - Qual é a contribuição de Negri na compreensão do poder constituinte e da política na modernidade?
Adriano Pilatti - Exatamente essa percepção de que o constituinte sempre excede e ultrapassa o constituído. O constituído é mero produto, consequência, expressão na melhor hipótese, traição na pior hipótese, do que é constituinte. O que é constituinte é a vida, é o trabalho, é o desejo, é a cooperação. A contribuição de Negri é compreender a fonte de toda a vivacidade e produção biopolítica. É compreender as imensas transformações que o trabalho e, portanto, o capitalismo, vem experimentando nas últimas décadas. Portanto, aí está a necessidade de atualizar as velhas categorias da esquerda, de se “antenar” a esse novo mundo e chamar a atenção teoricamente para a contribuição de autores como Spinoza.
Já no século XVII, quando todos ainda pensavam o absolutismo, esse filósofo já tentava pensar a democracia a partir da ideia de multidão e do múltiplo. Trata-se, portanto, de resgatar e recuperar as contribuições de Espinosa ao pensamento contemporâneo. Além disso, autores que equivocadamente são considerados estranhos ou distantes da tradição marxista, como Gilles Deleuze e Michel Foucault, justamente pela capacidade de compreender essas novas formas de expressão da vida, da resistência e de seus conflitos, podem inspirar uma atualização de um pensamento comprometido com a liberação da vida e encontrar na ideia de poder constituinte um fundamento teórico potente para essa perspectiva.
Intelectualidade ressentida
No livro ImpérioToni Negri faz um grande esforço de, no campo da sociologia política, tentar entender essas novas formas do governo mundial. Multidão, que é o livro seguinte e o último publicado no Brasil, tenta entender essa nova subjetividade política que não é uniforme e não é classe operária, mas uma outra coisa, que é essa confusão excedente e que corresponde justamente à própria variação do mundo do trabalho hoje que não é só mais a fábrica, do mundo da produção em que o hardware importa menos que o software. Falta traduzir para o português a última obra, que trata sobre o comum. Essa tetralogia, que engloba os livros Poder constituinteImpérioMultidão e Comum, traduz uma trajetória instigante e generosíssima de reflexões. Um processo de reflexão na ação que é fraternal, amoroso, que espelha uma inspiração franciscana de comprometimento não só intelectual, mas como prática, vivência, inserção e atravessamento do papel do intelectual junto aos pobres, com eles e por eles. Não como alguém que está distante das lutas dos conflitos, mas alguém que atravessa e se deixa atravessar naquilo que está acontecendo. Isso é o que inspira inclusive a rede de que participo, que é a Universidade Nômade. Trata-se da ideia do nomadismo, de caminharmos juntos com os que resistem e de atravessarmos esses grandes movimentos nos quais a vida e o desejo de viver, produzir e criar livremente se expressam.
Penso que essa inspiração é o que de fundamental o Negri traz. Isso é extremamente subversivo num país em que a intelectualidade historicamente tem uma tradição de colaboracionismo com o poder, e por isso alguns intelectuais de aluguel, ex-stalinistas que agora estão babando em seus pijamas liberais, estão aí como infiltrados da polícia a apontar o dedo para Antonio Negri, para Deleuze, para Foucault e para todos aqueles que estudam, refletem, militam e atuam no Brasil a partir dessas categorias.
O que está acontecendo hoje nas ruas, as categorias negrianas conseguem explicar, por isso seu pensamento é mais uma vez criminalizado. E é criminalizado justamente pelos que se apegam a esse pensamento velho, comprometido, cúmplice, de uma intelectualidade falida e submissa ao poder midiático, submissa às grandes transações empresariais.
Há um ressentimento profundo dessa intelectualidade que abriu mão de seu papel de esclarecimento e que está profundamente irritada com um mundo que não cabe mais nos seus “joguinhos de armar” conceituais. Creio que vêm daí toda a intolerância, a incompreensão e a tentativa de satanizar autores, livros, tradutores e pesquisadores. São pessoas que, francamente, deveriam levar mais a sério a própria biografia antes de recorrer a essas atitudes policiais.
IHU On-Line - A partir das ideias de Negri e da influência que Espinosa tem em seu pensamento, qual é a relevância de pensarmos em uma “obediência insensata” e o que essa categoria inspira no agir político?
Adriano Pilatti – Penso que outra grande contribuição de Spinoza e, portanto, uma influência importante sobre Negri, mas não só sobre ele, é justamente pensar as condições da servidão, o que leva homens e mulheres à servidão, quais os dispositivos externos e internos e a própria experiência existencial que produz essa tendência em aceitar o tirano. Acredito que as categorias que a partir daí podem ser desdobradas são muito ricas. Isso reforça a percepção de que toda a ação política que tende à liberação começa com a resistência, que existir é resistir, na expressão foucaultiana de que a resistência, em geral, é uma virtude. Muitos desses militantes e intelectuais que têm participado desses movimentos na Europa, no Mediterrâneo e no Brasil preferem, em vez de se definirem como socialistas, anarquistas ou comunistas, compreenderem-se simplesmente como “desobedientes”. Se eu tivesse de me impor uma definição, também usaria essa. Penso que diante de um sistema de poder que nega e trai a vida a todo instante, a virtude fundamental é desobedecer, é duvidar do tirano, é rir do poder. É não aceitar essa falsa majestade dos homens e mulheres que se apropriam dos poderes constituídos.
Filhos do Bolsa Família
Precisamos desafiar o poder com as armas da delicadeza, da ternura e da inteligência. Mesmo o poder que aparentemente expressa as nossas aspirações, porque o exercício do poder tende a alienar as pessoas. O poder faz mal a saúde. Vemos isso lamentavelmente hoje com a presidente Dilma e o PT, que não conseguem compreender a riqueza do que está nas ruas e que hostilizam esses meninos ou os ignoram, a exemplo do séquito de intelectuais que servem aos esquemas de poder e não conseguem ver nessas manifestações o primeiro e mais vigoroso resultado das políticas públicas que o próprio PT implementou. Esses meninos são filhos do Bolsa Família, do ProUni, são a expressão da equivocadamente chamada “nova classe média”, mas eles não querem só comer três vezes por dia. Eles querem ser livres. Eles querem uma vida boa. Então o PT no poder de repente recebe com estranheza aquilo que é consequência necessária do processo que ele mesmo instaurou. Quem trabalha a partir das categorias negrianas sabe que o poder constituinte não cessa, e que, portanto, a garantia de um ciclo de direitos pura e simplesmente vai abrir uma nova etapa de luta por direitos. Ninguém imaginava que isso fosse acontecer tão rápido, mas isso estava dentro da “desordem natural das coisas”. Há uma multidão jovem que de repente teve acesso aos bens mínimos e aos circuitos de comunicação virtual.
Basta ver o endereço das meninas e dos meninos que são presos arbitrariamente no Rio de Janeiro: são em geral jovens do subúrbio que recusam “a vida como ela é” e que acreditam em lutar por outros mundos possíveis. Seu anarquismo é de internet, pobre em referências intelectuais, mas elas e eles têm uma capacidade de escuta enorme. Eles pedem aula o tempo todo, querem saber mais, querem se informar. São em alguma medida beneficiários das políticas do governo Lula que desejam levar adiante as lutas por direitos, e o PT e os governistas agora os rejeitam como se fossem os patinhos feios quando, na verdade, eles são os cisnes da democracia brasileira. Do mesmo modo, é também equivocada e covarde essa investida repressiva contra todos os adeptos da tática black bloc e toda a escalada de intimidações contra as manifestações que as forças de repressão federal, estaduais e até locais estão desenvolvendo. Não são as polícias que devem mediar o conflito entre os responsáveis pelos poderes constituídos e a multidão jovem nas ruas, é a política que deve fazê-lo, uma política aberta ao diálogo e à ação direta.
Criminalização das manifestações
O processo de criminalização das manifestações de rua, seja por parte do Estado, seja por parte da mídia oligopolista, é crescente desde junho. No Rio de Janeiro, o ápice até aqui foi a Noite da Vergonha, em 15 de outubro, quando cerca de 200 manifestantes foram detidos e mais de cem encaminhados às prisões, inclusive mais de 70 manifestantes que ocupavam pacificamente a escadaria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Ali ficou evidente, de uma vez por todas, que se trata de uma política de Estado. Ônibus foram previamente reservados para o transporte de uma massa de detidos e, em cada um desses ônibus, menores foram misturados com adultos para que estes fossem indiciados por corrupção de menores. Os detidos foram enviados para delegacias muito longínquas, no claro intento de dificultar o trabalho dos bravos advogados voluntários e evitar manifestações em frente às delegacias. Felizmente a imensa maioria foi liberada através de ordens de habeas corpus concedidas pelo Judiciário, que também determinou o arquivamento da maioria dos inquéritos, com apoio do Ministério Público, porque as acusações não resistiam ao menor critério legal. No entanto, restam ainda dois presos, dois negros pobres, o que bem retrata a desigualdade da Justiça entre nós. Desde então, um clima de intimidação foi criado, com apoio da mídia de negócios, no claro intento de esvaziar as ruas.
Criminalizar os manifestantes, reduzir a grandeza das manifestações a episódios isolados de depredação de patrimônio, prender indiscriminadamente são formas de inibir o desejo de ir às ruas, de fazer com que os jovens desistam de tomar parte nas manifestações. Além disso, as medidas lamentavelmente anunciadas pelo ministro daJustiça apontam para uma verdadeira conspiração contra o direito de manifestação, com a tentativa de submeter inclusive os juízes a uma política uniforme de prejulgamento e condenação. Tudo isto é gravíssimo, é uma afronta às liberdades, é um tapa na cara desses garotos e garotas que são perseguidos por se atrever a lutar “por uma vida sem catracas”.
A primeira e única grande manifestação havida no Rio após as prisões em massa que foram feitas na Noite da Vergonha, de 15 de outubro, aquela que aconteceu em 31 de outubro pela liberdade, transcorreu sem o menor incidente.
Qual foi o resultado? A mídia de aluguel mal noticiou, pois só dá destaque quando há problema. Essa é uma atitude irresponsável e criminosa da parte de concessionários de serviços públicos sobre os quais recai um ônus educativo e informativo. Qual é o sinal que esses traficantes da má informação estão dando aos meninos nas ruas? “Se não houver bagunça, vocês não terão visibilidade”, este é o sinal. É vergonhoso.
IHU On-Line - Para o filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov , a democracia no Ocidente é ameaçada por três inimigos internos: o messianismo, o neoliberalismo e o populismo. Qual é a pertinência dessa análise para o cenário brasileiro e latino-americano?
Adriano Pilatti - O messianismo é sempre um problema. Precisamos pensar em formas políticas que dispensem os profetas. O neoliberalismo acabou em 2008. Os tormentos que a América do Norte e a Europa vivem nesse momento demonstram bem que esse veneno monetarista e excludente só produz exclusão, sofrimento e pobreza. A categoria do populismo é uma categoria que precisamos analisar com alguma cautela. O Papa Francisco tem sido chamado de populista, termo com que conservadores e reacionários costumam tentar desqualificar quaisquer atores políticos comprometidos com reformas ou transformações sociais.
No Brasil, o professor Darcy Ribeiro dizia isso claramente comentando a inesperada, para as elites, consagração popular do presidente Vargas nas eleições de 1950. E estava lá um intelectual paulista dos Jardins que escreveu um libelo indignado criticando “aqueles homens sujos, maltrapilhos, sem dentes na boca, descalços, em festa pelas ruas”. Aí Darcy Ribeiro diz algo fantástico: “Então a academia paulista inventou o conceito de populismo para poder odiar teoricamente o eleitorado”.
Populismo e tradição golpista
O conceito de populismo sempre foi usado de maneira muito perversa no Brasil, para poder homologar o que era adverso. Se não fosse assim, como seria possível colocar no mesmo saco Jango e Jânio Quadros , Getúlio Vargas eAdemar de Barros? Então para que serve o conceito? Para distinguir. Um conceito que nada distingue é um problema. O termo populismo faz parte da tradição moralista do golpismo brasileiro. É o termo preferido com que as elites procuram desqualificar, desde os anos 1950, qualquer governo que tenha compromissos mínimos com as camadas populares.
Foi satanizado como populista Getúlio, no governo constitucional que o redimiu, um governo que deixou para o estado brasileiro aquilo que ele tem de melhor: PetrobrasBNDESCNPQCapes. Tudo isso veio do segundo governoVargas. Foi classificado como populista Arraes , que tentou fazer a emancipação do campesinato pernambucano. Foi classificado como populista Jango, o grande líder democrático e reformista, muito mais ousado do que Lula. Foi satanizado como populista, até a sua morte, Leonel BrizolaRequião hoje e o próprio Lula também são intitulados de populistas. Então, trata-se de um termo que faz parte do léxico moralista da direita golpista no Brasil.
Vejo com muita reserva o uso desse termo quando ouço até o Papa Francisco ser classificado como populista e demagógico. [O jornal] O Globo, não contente em fazer oposição aos pobres e aos governos que expressam os pobres no Brasil, agora quer fazer oposição ao Papa. Trata-se de um termo que vejo com alguma cautela, porque ele pode ser usado para tentar desqualificar qualquer projeto político que tente expressar ou se deixa atravessar pelos movimentos e pelas aspirações populares.
(Por Márcia Junges)
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/525872-o-regime-militar-nao-acabou-nas-periferias-mudou-apenas-a-cor-do-uniforme-entrevista-especial-com-adriano-pilatti

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

É preciso mais deliberação no STF? Artigo de Carlos Bastide Horbach

Artigo do Prof. de Direito Constitucional da USP Carlos Bastide Horbach sobre deliberação e o STF. Um artigo crítico e propositivo sobre a forma como o STF tem encarado sua função de deliberação coletiva.

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Colunas

ANÁLISE CONSTITUCIONAL

É preciso mais deliberação no Supremo Tribunal Federal?

Carlos Bastide Horbach - 18/09/2013 [Spacca]John Paul Stevens, associate justice da Suprema Corte norte-americana entre 1975 e 2010, conta que, quando de sua chegada ao tribunal, um colega mais experiente chamou sua atenção para um fato de extrema relevância: um juiz da mais alta instância judiciária dos Estados Unidos é muito poderoso, desde que consiga convencer outros quatro colegas.[1]
De fato, é possível afirmar que nos tribunais, quando se sai do julgamento monocrático e se colocam as demandas perante os colegiados, não há mais falar em livre convencimento do juiz, mas sim em “convencimento entre os juízes”. Juízes esses que devem buscar um mínimo de consenso, de modo a solucionar os casos submetidos a sua apreciação.
Se isso é realidade para qualquer tribunal ou instância colegiada de poder, torna-se ainda mais evidente — e importante — no âmbito de cortes supremas, nas quais as decisões demandam um nível superior de maturação dos argumentos e uma avaliação, a mais acurada possível, de seus reflexos no sistema jurídico como um todo.
Nesse quadro, ganha relevo as seguintes questões: como decidem os tribunais supremos? Como se dá esse “convencimento entre os juízes”, do qual saem as mais importantes decisões conformadoras de um ordenamento jurídico? Como são testados os diferentes argumentos? Como são contraditados? Como são amadurecidos no embate de ideias que caracteriza o labor de um colegiado?[2]
Tais questionamentos colocam em evidência o tema da deliberação nas cortes supremas, que se transformam no locus privilegiado de debate da razão pública, como bem assevera Virgílio Afonso da Silva: “as decisões de um tribunal de cúpula — como a Suprema Corte dos Estados Unidos, os tribunais constitucionais europeus e o Supremo Tribunal Federal — têm que refletir valores políticos de justiça e razão pública. Por isso, o papel da deliberação é fundamental”.[3]
Mas no que consistiria considerar um tribunal como um órgão privilegiado de deliberação? Qual o sentido de se compreender o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, como um deliberador?
Essa resposta pode ser sintetizada a partir das considerações de Conrado Hübner Mendes, para quem as cortes constitucionais configurariam fóruns deliberativos, pois “seriam, em outras palavras, espaços que privilegiam o argumento à contagem de votos, foros decisórios que se caracterizam, essencialmente, pelo esforço de persuadir e a abertura a ser persuadido por meio de razões imparciais”.[4] A deliberação, portanto, permite a construção de melhores condições de interpretação constitucional, com maior legitimidade argumentativa e potencialidade de interação com outros poderes.
Conrado Hübner Mendes desenha, ainda, um modelo no qual as tarefas de uma corte deliberativa seriam mais bem identificadas, permitindo a avaliação objetiva de suas atividades. Para o autor, a deliberação passaria por três fases: a) a fase pré-decisional, na qual há contestação pública dos diferentes argumentos levados ao tribunal, que devem ser canalizados da melhor forma possível; b) a fase decisional, em que há a interação colegiada entre os membros da corte, na busca não só do consenso, mas especialmente de uma boa decisão, ao aproveitar — acatando ou rejeitando — os argumentos da fase anterior; e c) a fase pós-decisional, em que o colegiado produz uma decisão escrita deliberativa, que se caracteriza como o produto mais relevante desse processo e expressa, com clareza e objetividade, seus fundamentos.[5]
A partir de perspectiva distinta, mas complementar, Virgílio Afonso da Silva desenvolve análise que pode situar o STF ante as categorias acima apresentadas. Diz o autor que o Supremo não pode ser apontado como um modelo de deliberação, “especialmente devido à (1) quase total ausência de trocas de argumentos entre os ministros: nos casos importantes, os ministros levam seus votos prontos para a sessão de julgamento e não estão ali para ouvir os argumentos de seus colegas de tribunal; (2) inexistência de unidade institucional e decisória: o Supremo Tribunal Federal não decide como instituição, mas como a soma dos votos individuais de seus ministros; e (3) carência de decisões claras, objetivas e que veiculem a opinião do tribunal: como reflexo da inexistência de unidade decisória, as decisões do Supremo”.[6]
Nesse quadro, a mudança em algumas práticas seria interessante para aumentar o coeficiente de deliberação no STF. Pode-se pensar em medidas como alterações nos ritos processuais, para diminuir a carga de trabalho; a revisão do modo de expressão das decisões, que poderiam voltar ao modelo praticado no início da República, no qual o Tribunal — seguindo sua matriz norte-americana — produzia um único documento, não dividido em vários votos, com seus fundamentos; a divulgação prévia dos votos dos relatores, para que os demais julgadores tivessem condições de contrapor seus argumentos com maior efetividade; entre outros pontos relativamente simples, mas com enormes repercussões.
Mas para a adequada deliberação impõe-se, ainda, um aspecto de extrema relevância. Como já explicitado em outra oportunidade, a formação das decisões depende — por óbvio — dos membros do colegiado, cujas subjetividades se somam ou se repelem na construção de maiorias e na formulação de votos dissidentes.[7] Em suma, para lembrar Evandro Lins e Silva, com sua valiosa experiência de advogado e ministro do Supremo, “a composição dos tribunais é muito importante. (...) O julgamento depende muito da composição da corte em determinado momento histórico”.[8]
Vale dizer, a deliberação pode ser afetada pela composição do tribunal, que a tornará mais fácil ou mais difícil, que propiciará uma maior ou menor vocação para a formação de consensos e para a prática argumentativa voltada à composição de soluções para os casos em análise.
Recentemente, o The New York Times publicou um artigo de Linda Greenhouse analisando a atual composição da Suprema Corte norte-americana e discutindo como a homogeneidade de seus membros, apesar das marcantes diferenças ideológicas, prejudicava o processo decisório.[9]Greenhouse narra uma conferência do chief justice John Roberts, na qual lhe foi perguntado qual a diferença, para o funcionamento do tribunal, entre uma formação de “tecnocratas” — nas palavras do formulador da questão, o juiz Harvie Wilkinson — e outra incluindo homens de Estado e líderes políticos.
Roberts, considerando os membros atuais da Suprema Corte, oriundos basicamente de cortes de apelação — com a exceção da justice Kagan, egressa do corpo docente da faculdade de direito de Harvard, com breve passagem pelo governo federal —, optou por uma resposta genérica, mas bastante reveladora, na visão de Greenhouse. Segundo o chief justice dos Estados Unidos, a atual composição de “tecnocratas” é uma “anomalia histórica”, cujas consequências não podem ainda ser medidas. Mas, se é esperada do tribunal uma atuação eminentemente jurídica, com a aplicação do direito aos casos concretos, a concentração de “tecnocratas” seria adequada. Entretanto, reconhece Roberts que se a corte é chamada a desempenhar um papel mais político — “talvez do modo como os tribunais constitucionais em países europeus fazem” — a participação de membros com experiência no campo político, seja no executivo ou no legislativo, faz sentido. E, surpreendentemente, o chief justice aventa a possibilidade de haver um descompasso entre as questões que são submetidas à apreciação da Suprema Corte e o tipo de juiz investido da responsabilidade de decidi-las.[10]
A interpretação que Greenhouse faz dessa resposta é bastante interessante. Em suma, Roberts estaria afirmando que existe uma falha de conexão entre o que o povo espera da Suprema Corte e aquilo que a atual composição foi treinada e escolhida para fazer.
Essa reflexão pode muito bem ser transposta para a realidade do Supremo Tribunal Federal brasileiro, que cada vez mais se identifica com o modelo das cortes constitucionais europeias, assumindo, pois, o papel mais político a que se referiu Roberts em sua resposta.[11]
É verdade que decisões têm sido dadas às demandas postas ao STF, de modo a satisfazer uma ampla camada da sociedade brasileira. Porém, a questão que se põe, na linha desenvolvida neste artigo, é a de saber se a deliberação que fundamenta tais respostas é a mais adequada e se a composição atual contribui para um eventual déficit argumentativo.
Assim como nos Estados Unidos, a Suprema Corte brasileira é composta, hoje, exclusivamente por membros que seriam classificados por Wilkinson como “tecnocratas”, todos oriundos de estamentos técnico-jurídicos. Dos 11 ministros do STF, quatro têm experiência no Ministério Público — Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa —, dois foram juízes de carreira – Luiz Fux e Rosa Weber —, três passaram pela advocacia pública — Cármen Lúcia, Teori Zavascki e Roberto Barroso — e dois se dedicaram à advocacia privada, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Entre esses, há ainda aqueles que, oriundos de determinadas classes, tiveram experiências judicantes antes de chegar ao Supremo, como é o caso dos ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Teori Zavascki. Muitos dos ministros ainda exercem – ou exerceram – atividade docente em faculdades de direito.
Nenhum, porém, pode ser enquadrado — para usar as palavras de Roberts — como experiente no campo da política. É verdade que alguns chefiaram órgãos de advocacia pública, com status de ministério ou de secretaria de estado, mas isso não se compara com a titularidade de mandatos eletivos ou com a chefia de órgãos executivos encarregados da definição de políticas governamentais.
A tradicional atuação do técnico do direito ordinariamente produz compreensões estritamente jurídicas — muitas vezes legalistas — das questões sob análise, com uma natural tendência a ignorar — e até mesmo desprezar — o componente político e social que permeia o fenômeno jurídico.
Com isso, os votos proferidos nas sessões de julgamento são recheados de verdades técnicas, que são avaliadas em sua correção frente a construções lógico-dedutivas, as quais demonstrarão seu acerto ou erro. Nesse quadro, em que o julgador é chamado a responder tecnicamente, por meio de “verdades científicas”, às demandas que lhe são postas, pouco espaço resta para a composição, para a discussão, para a efetiva deliberação. Tal circunstância é reforçada, também, pela postura ainda muito presente no ambiente universitário brasileiro, no qual o professor raramente tem suas opiniões contestadas, seguindo-se a fórmula do magister dixit. E os juízes professores não raro se manifestam como se tendo tal máxima em mente.
Ademais, como as grandes questões de repercussão social não vêm encapsuladas nos padrões técnico-jurídicos comuns, sua solução por juízes com características “tecnocratas” e “professorais” se torna mais difícil, em especial no momento da fundamentação e da conformação dos diferentes interesses em jogo.[12] A deliberação, em tal perspectiva, é transformada em procedimento formal de fundamentação individual, por parte de cada juiz, e de contagem de votos para definição de resultados.
Ademais, nesses julgados se revela, por vezes, certa autossuficiência das cortes, que pode ser entendida — ainda que equivocadamente, talvez — como um desprestígio às instâncias políticas, contribuindo para que a decisão tenha um menor potencial de abertura de diálogos institucionais.
Juízes experimentados na seara política, porém, tendem a trazer para suas atividades judicantes uma postura mais propícia à formação de consensos materiais, resultantes de uma efetiva deliberação. E podem gerar produtos da atividade jurisdicional mais aptos a promover o debate institucional, dirigido ao aprimoramento do sistema jurídico nacional.
Na prática e de modo objetivo, é inegável que ministros com experiência política deixaram marcas importantes na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Basta lembrar nomes como o de Aliomar Baleeiro[13] — com relevante atuação parlamentar, como deputado federal pela UDN baiana — ou Paulo Brossard, líder da oposição ao regime militar no Senado Federal e Ministro da Justiça de José Sarney. É igualmente incontestável, para resgatar vivências mais recentes, que os julgamentos do STF tinham outra dinâmica quando contavam com as contribuições dos Ministros Nelson Jobim e Maurício Corrêa, ambos experimentados parlamentares, ex-constituintes e ex-Ministros da Justiça.
A mescla de diferentes visões sobre o plural fenômeno jurídico é algo a se desejar numa corte suprema, mas não menos desejável deve ser a capacidade de composição e acordo entre seus membros. Somente assim as decisões da mais alta instância judiciária poderão expressar, no maior grau possível, um consenso não só formal — resultante da simples e mecânica soma de votos —, mas também um consenso material, o que propiciará um evidente incremento no que toca à legitimidade.
Essa questão — espera-se — há de ser levada em consideração pela Chefia do Executivo a ser eleita em 2014, tendo em vista as cinco vagas que se abrirão no STF ao longo do próximo mandato presidencial.

[1] A experiência do justice Stevens na Suprema Corte está relatada num interessante livro, em que ele apresenta suas impressões do tribunal e dos cinco chief justices com quem conviveu, seja como assessor – Fred Vinson –, como advogado – Earl Warren – e como juiz – Warren Burger, William Rehnquist e John Roberts, compreendendo mais de 60 anos de história do Judiciário norte-americano. Cf. John Paul Stevens. Five chiefs. A Supreme Court memoir. New York: Back Bay Books, 2011. Stevens destaca que o próprio chief justice acaba tendo seu poder em muito limitado à capacidade de convencer outros quatro colegas: “The chief justice of the United States has often been described as the ‘first among equals’. He is ‘equal’ because, like each of his eight colleagues, he has only one vote. It takes a majority of equally powerful votes to support a decision on the merits of any case before the Court. To achieve a desired outcome, the chief justice must convince as many colleagues to join him as must any other justice” (p. 6-7).
[2] Essas questões foram debatidas em sala de aula com os alunos da disciplina “Análise de jurisprudência constitucional”, ministrada na graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Como anotado em textos anteriores, esta coluna da ConJur veicula, num primeiro momento, os temas que são trabalhados com os alunos na mencionada disciplina optativa. O presente texto reflete discussões que permearam duas aulas, que contaram com a colaboração de dois colegas do Departamento de Direito do Estado, o Professor Doutor Conrado Hübner Mendes e o Professor Titular Virgílio Afonso da Silva, a quem o autor agradece.
[3] Virgílio Afonso da Silva. “O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública”. Revista de Direito Administrativo, n. 250, 2009, p. 209.
[4] Conrado Hübner Mendes. “O projeto de uma corte deliberativa”. Jurisdiçao constitucional no Brasil, Adriana Vojvodic et. alli (org.), São Paulo: Malheiros, 2012, p. 54.
[5] Conrado Hübner Mendes. “O projeto de uma corte deliberativa”, p. 59 e seguintes.
[6] Virgílio Afonso da Silva. “O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública”, p. 217.
[7] Carlos Bastide Horbach. Memória jurisprudencial – Ministro Pedro Lessa, Brasília: STF, 2007. Em especial no que dizia com a passagem de Pedro Lessa no STF, foi anotado o seguinte: “Pedro Lessa proferiu os votos que serão estudados ao longo da análise que ora se inicia dentro de uma realidade e de uma estrutura judiciárias específicas, as do Supremo Tribunal Federal da Constituição de 1891. Esse Tribunal tinha competências peculiares, julgando feitos que orientaram – limitando e condicionando – as manifestações do Ministro. Por fim, essas manifestações foram expressas num órgão colegiado e eram dirigidas ao convencimento dos colegas, ante uma pluralidade de opiniões.
Desse modo, o desenho de um perfil jurisprudencial de Pedro Lessa não pode prescindir de um exame prévio do Supremo Tribunal Federal do qual fez parte – o cenário –, dos tipos de feitos que lhe eram apresentados – o roteiro – e dos colegas com os quais formava as maiorias e dos quais discordava em seus votos vencidos – os coadjuvantes” (p. 25 – destaques não originais).
[8] Evandro Lins e Silva. O salão dos passos perdidos. Depoimento ao CPDOC, Rio de Janeiro: Nova Fronteira – FGV, 1997, p. 473.
[9] Linda Greenhouse. “Justices on the job”, 24 de julho de 2013. Texto disponível em:http://opinionator.blogs.nytimes.com/2013/07/24/justices-on-the-job/?_r=0
[10] Assim como no texto de Greenhouse, segue a transcrição integral da resposta de Roberts, para que o leitor possa avaliar seu verdadeiro sentido: “That has to have some impact on how the court looks at its work, and I just don’t know yet whether it’s a positive one or not. If you think the job of the Supreme Court really is trying to apply law to particular cases, maybe it makes sense to have a court of judges.
If you view it more in terms of playing a political role – not in a partisan politics sense, but as part of the political process, maybe the way a constitutional court in the European countries does – well, then maybe it makes sense to have people who’ve been active in the political realms, either in the executive branch or in the legislative branch. It has to be saying something about the role of the court in terms of what the makeup is.
You see it in the arguments as well. We have a very good bar. They present legal arguments. If you go back and look at briefs that were filed in the Warren Court era, they sweep more broadly. They paint with a broader brush in terms of social policy concerns. It reflected the audience they were in front of.
People can and should debate whether or not that’s a good development. I think one consequence of it – it’s probably a good development if you have a particular sense of what types of issues should be presented to the Supreme Court, but a different sense of whether it’s good or bad if you think particular different types of issues should be before the Supreme Court.
So I think it’s all interrelated: the nature of the legal arguments, the background of the justices, the types of issues that are being presented. It is, I think, a very interesting development that people need to think about.
If you’ve been a president, if you’ve been a governor, if you’ve been a senator, you have a particular way of looking at issues and matters of public policy. If you’ve been a judge on a court of appeals, it seems to me you have a very different way of looking at it.
So you have to decide what types of questions you think the court should be deciding, and if they call for people who have one way of looking at public policy as opposed to people – you said ‘technocrats,’ not the right word – a more focused way of drilling in on the law. And maybe you think there’s a mismatch between the kind of question the court’s being asked to decide and the type of personnel that have to decide it.
And you can obviously resolve that tension one way or another. But I do think it’s not simply a coincidence or a happenstance that you have a court that looks so different than what it looked like in the past.”
[11] São vários os julgados em que o STF se apresenta como a corte constitucional brasileira, como o MI 708, Min. GILMAR MENDES, DJ de 31.10.2008; ou a ADI nº 2.130-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 02.02.2001. Não serão aqui expostas as conhecidas diferenças institucionais entre os modelos de cortes supremas e tribunais constitucionais, o que demandaria um artigo específico.
[12] Nesse sentido, também Conrado Hübner Mendes destaca a importância do perfil dos magistrados para a construção de um ambiente mais propício à deliberação no STF: “Quais seriam os caminhos para aperfeiçoar as capacidades deliberativas do STF? Deste Tribunal emanam hoje, sem dúvida algumas das decisões cruciais da democracia brasileira. Ele não tem sido, entretanto, o espaço do argumento e da persuasão. Recusa-se, por temperamento, a falar na primeira pessoa do plural. Sob a perspectiva deliberativa, continua a ser um ente periférico e inexpressivo. Transformar um ‘tribunal de solistas’ num tribunal deliberativo requer mais que rearranjos procedimentais. Exige que juízes, pessoalmente, entendam e valorizem o espírito da deliberação. Que se tornem, enfim, deliberadores” (cf. “O projeto de uma corte deliberativa”, p. 73).
[13] Sobre a passagem de Aliomar Baleeiro pelo STF, ver: José Levi Mello do Amaral Junior.Memória jurisprudencial – Ministro Aliomar Baleeiro, Brasília: STF, 2007.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-nov-17/analise-constitucional-preciso-deliberacao-supremo-tribunal-federal